Catarina era uma mulher elegante, bem-sucedida e feliz.
Todas as amigas lhe invejavam a beleza, a família genuinamente unida, o
marido ainda jovem e extraordinariamente poderoso e rico. Tinha triunfado nos
negócios e ela nunca teve a mais leve curiosidade de querer saber os seus
contornos.
Naquela final de tarde, subiu as escadas para o sótão,
encaminhada por uma sem razão qualquer, em busca de nada. Lá chegada,
lembrou-se que não visitava aquele sítio desinteressante há anos… Sorriu à
memória dos anos e verificou como o passado ficava arrumado em caixotes cobertos de pó. No entanto, havia um que tinha sido aberto há pouco tempo, pois notava-se
os dedos de homem sobre o cinzento pó do duro papelão. Seguiu mecanicamente o
instinto. Eram papeis e mais papeis e deu consigo numa pose de bisbilhoteira, a
pegar neles ao molho, a folheá-los ao acaso, até que o acaso lhe transtornou
definitivamente a vida!
Eram contratos de compra e venda, declarações de dívida,
cartas pessoais em tom ameaçatório, fotos de encontros proibidos, provas bancárias de avultadas verbas desviadas de contas de
algumas empresas de que o marido fora sócio, para contas com estranhos
titulares, sediadas na Suíça e nas Ilhas Caimão. Pior do que tudo, evidências
claras que o marido tinha estado envolvido no assassínio de um antigo sócio,
misteriosamente desaparecido num acidente de barco, durante uma viagem de
veleiro, no mar Adriático.
Aninhara-se no chão poeirento e sujo como se aterrasse na
mais completa miséria moral, sem paraquedas nem GPS para descer as escadas e
encarar uma realidade que jamais seria a mesma.
Que fazer com toda aquela informação que voou sem aviso como
um kamikaze sobre a sua vida? Pegar naqueles papeis e confrontar o marido? Para
quê se eles eram tão evidentes? Como reagiria ele àquela descoberta dela?
Afinal, quem era verdadeiramente o Nuno com quem casara há quinze anos e de
quem tivera Filipa, uma jovem adolescente de treze anos, cheia de sonhos e projetos? Estaria ela também em
perigo?
Pensou em divorciar-se dele, como uma resolução inabalável, e denunciá-lo à polícia! Depois pensou na vida boa que levavam, no futuro
extraordinário que almejava para Filipa e como isso estava dependente da
posição económica e sobretudo social que detinham. Pensou nela e em como nunca
soube o que era trabalhar, ganhar dinheiro. Na verdade, nem sabia quanto
gastava. Usava o cartão de crédito que o marido lhe dera como se abre a
torneira da cozinha. Nunca deixara de cumprir o mais pequeno capricho, quanto
mais um desejo ou uma necessidade.
Por outro lado repugnava-a viver perto de um homem tão mau
e perigoso. A força da sua consciência era tremenda e dizia-lhe que se devia
afastar dele o mais rapidamente possível. Tinha deixado de o amar naquela hora
que passara e sabia que era um caminho sem regresso. No entanto, o medo da
ruína económica, social e pessoal atormentava-a. Não tinha já os pais em quem
se abrigar e receava ser surpreendida pela inveja das amigas numa situação de
necessidade absoluta. E havia ainda Filipa! Com que direito lhe destruiria os sonhos que ela já
acalentava?
Ouvia a campainha! Era Nuno a chegar. Tinha que usar aquele
sorriso cínico das enfadonhas festas a que os dois eram obrigados a ir de vez
em quando. Descia a escadas de devagar, como quem viaja para um inferno eterno.
Sabia que tinha de tomar uma decisão, porque até não
decidir era impossível para si. Apesar de tudo, percebia que a sua vida se
tinha transformado numa ruína pessoal de que era totalmente inocente. Decidisse
o que quer que fosse, ela já tinha perdido quase tudo.
GAVB
Belo texto. Quantas vezes somos confrontados com dilemas terríveis. Parabéns.
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