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sábado, 22 de julho de 2017

BIBLIOTERAPIA


Raquel vivia a mil. Tinha finalmente a vida que sonhara: viagens, festas, amigos a transbordar da agenda, dinheiro a sobrar ao final do mês. Não ganhara nenhum euromilhões, mas um alinhamento astrológico qualquer tinha-a colocado como diretora, para o mercado europeu, de uma farmacêutica americana. Havia apenas um senão: o  trabalho era imenso e um dia o corpo rebentou.
Como foguetes numa noite de festa todos os ingredientes que faziam a sua vida glamorosa desapareceram. A empresa pagou-lhe uma licença de dois anos, para se reabilitar, na Suíça. Lentamente o corpo foi recuperando a forma física e mental, mas não voltaram os amigos e com eles o prazer de viajar. Eles continuavam na mesma onda, com a adrenalina no máximo, testando os seus limites.
Deprimia-a e magoava-a o facto de não terem voltado, de tão pouco quererem saber dela verdadeiramente. Sabia que aquela amargura não a deixava progredir e por isso não ousava responder aos e-mails do chefe, que lhe perguntava quando regressaria. 

Descrente de qualquer terapia, enrolada num xaile, junto à lareira, olhou a estante carregada de livros velhos e o título de um espevitou-lhe a curiosidade – Amor Em Tempos de Cólera, de Gabriel García Márquez. Nunca gostara de ler. Lia apenas aquilo que era imprescindível para fazer bem o seu trabalho e achava os romances, as biografias ou os ensaios uma perda de tempo. 
Além da curiosidade do título, pegou no livro com a certeza que adormeceria mais rapidamente.

Felizmente para Raquel, o romance de Gabriel García Márquez despertou-a para a madrugada e para a vida. Leu durante seis horas, entregando-se apaixonadamente à leitura como Florentino e Fermina se amaram ao longo de três décadas, apesar de a vida os ter afastado. Em cada página devorada, Raquel ia percebendo que aquele não era um amor qualquer. Apesar de percorrerem percursos separados, a constância dos sentimentos, a capacidade de não perder a bússola do amor durante tantos anos, comoveu a leitora. O amor de Florentino Ariza e Fermina Daza tinha sobrevivido ao tempo, à desagregação física, à desesperança, ao desânimo.
Nos meses seguintes, Raquel fechou-se no seu chalé suíço, desligou a net e os telefones e mergulhou na leitura. Livro atrás de livro, como se fosse uma criança num bombonaria sem ter os pais por perto.  

Quando a primavera chegou, telefonou ao chefe e disse que regressaria a Bruxelas no dia seguinte. Apanhado de surpresa, ele nem sabia o que lhe propor. Já tinham desistido dela e ele nem sabia como lho dizer. Não foi preciso. Ela própria tratou de lhe apresentar uma proposta de retorno ao trabalho que sabia que ele recusaria. Apertaram as mãos e despediram-se. Levava um sorriso tão confiante que intrigava qualquer um.
Enfiou um casaco colorido, deu a mão esquerda ao seu novo amigo e partiu em viagem. Ia acompanhada de amigos de diferentes lugares, que a salvaram com metáforas, ideias e rimas. Sem nunca terem aberto a boca, nunca a deixaram sozinha um único dia.
GAVB

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