O Chile é um país
fascinante. Desde o seu povo originário exemplo de luta pela liberdade, os
Mapuches, passando pela sua riqueza cultural, resultado de uma profícua mistura
de outros povos vindos de todos os lugares do mundo, terminando numa geografia
ímpar acompanhada pela Cordilheira dos Andes, onde algumas das montanhas mais
elevadas do mundo inspiraram o despertar de aspirações profundas da humanidade,
e as mais belas poesias.
É uma terra de
artistas por excelência, um lugar destinado a germinar criações inspiradas,
inovadoras e revolucionárias. Victor Jara, Violeta Parra, Pablo Neruda, Alejandro Jodorowsky, Vicente Huidobro, Nicanor Parra, Gabriela Mistral, Humberto García Casanueva, Isabel Allende, Raúl Ruiz, Alejandro Aravena, Alberto Montt, Luis Sepúlveda, Anita Tijoux, Guillermo Lorca García-Huidobro, Rebeca
Matte, Celia Castro, Claudio Bravo, Roberto Matta, são apenas alguns nomes mais
conhecidos entre muitas centenas de artistas chilenos.
Nas palavras de
Jorodosky, nos anos 40 e 50 o Chile era o país da poesia por excelência.
Escrever e recitar poesia era prática comum e não exclusiva das elites. “Era a
época da Segunda Guerra Mundial, mas o Chile não sofreria, porque estava entre
as montanhas e o Oceano Pacífico. Sem televisão, longe do mundo, com muito
dinheiro do cobre e do nitrato de sódio, o Chile era uma festa sem fim todo
dia. (...) E, sobretudo, os melhores poetas estavam lá. Havia dois prémios
Nobel, Neruda e Mistral. Muitos poetas. Então, no Chile, aconteceu um estranho
milagre: a presença da poesia. Bêbados formavam coros e recitavam Neruda. A
poesia era respeitada. No Chile, ser poeta era ter profissão: você era poeta.
Não precisava de fazer outra coisa. Era uma vida em que descobrimos liberdade.
Uma atividade intelectual, emocional e sexual intensa. Éramos jovens, no meio
do paraíso – é isso que quero mostrar.”
Cem
Anos Não São Nada: A Entrevista da VICE com Alejandro Jodorowsky por Camilo
Salas, 20 Março 2015.
Neste contexto,
andava Salvador Allende em fervilhante atividade política: fundador do Partido
Socialista Chileno, Ministro da Saúde, deputado, senador. Em 1970, candidata-se
a presidente, pela Unidade Popular, formada por socialistas, comunistas, socialdemocratas.
No dia 3 de novembro de 1970, Salvador Allende assumiu a Presidência do Chile. Pela
primeira vez um político socialista chegou ao poder de forma democrática no
mundo. Nessa época, 45% do capital do país estava nas mãos de investidores
estrangeiros, os estadounidenses dominavam a exploração das minas de cobre, 80%
das terras eram de propriedade de grandes latifundiários. Democraticamente
eleito, Allende declarou que faria um governo socialista, implantaria a reforma
agrária, nacionalizaria os bancos e as grandes empresas. E assim tentou fazer.
Mas por pouco tempo.
Propunha-se uma
mudança de paradigma social e político, em que os pobres começaram a entrar nas
escolas, os trabalhadores começaram a ter direitos, o sistema de saúde ganhou
recursos, nacionalizaram-se companhias de exploração de recursos naturais.
“Durante o curto
período em que durou o governo do presidente chileno Salvador Allende, da
Unidade Popular, floresceram as artes, as letras, a cultura e a educação no
formoso país andino. No mundo da cultura surgiram infinidade de grupos
artísticos, relacionados com a música, o cinema e a pintura. Havia uma grande
efervescência e entusiasmo. Os estudantes universitários trabalhavam como
voluntários durante as suas férias, viajando por todo o país e organizando
campanhas de alfabetização entre os trabalhadores e no rural com os camponeses.
No mundo rural dinamizavam culturalmente os moradores e labregos. A educação em
todos os níveis educativos superava-se cada dia, ao contar com planos de estudo
dinâmicos e modernos.” Salvador Allende,
um político digno por José Paz Rodrigues a 6 de Setembro de 2017 in Portal
Galego da Língua
Tais propostas e
ações políticas provocaram uma forte reação contrária violenta nas elites chilenas
e nos seus correligionário nos Estados Unidos. Esta potência mundial não podia
permitir o possível sucesso, ainda que com erros e dificuldades, de um modelo
socialista democrático, pois isso iria destruir o seu próprio modelo social,
baseado na concepção zoológica da lei do mais forte, no empreendedorismo individual
e no domínio da banca sobre os sistemas de saúde e educativo.
O violento golpe
militar de 11 de setembro de 1973 derrubou o regime democrático
constitucional do Chile e o seu presidente, tendo sido articulado conjuntamente
por oficiais da marinha e do exército chileno, com apoio militar e financeiro
do governo dos Estados Unidos e da CIA, e encabeçado pelo general Augusto
Pinochet, que se proclamou presidente. Deste dramático episódio surgiu uma
ditadura feroz que produziu: perseguições, torturas e assassínio de milhares de
membros de partidos, organizações ou instituições de cariz progressista. “Uma
mulher que foi detida em 1974 na capital chilena e permaneceu dois anos presa
sem nenhum processo relatou que “por causa do estupro cometido pelos
torturadores, eu fiquei grávida e abortei na cadeia”. “Sofri choques elétricos,
fui pendurada, posta no pau de arara, "submarinos" [ameaça de
afogamento], simulação de fuzilamento, queimaduras com charutos. Obrigaram-me a
tomar drogas, sofri estupro e assédio sexual com cães, a introdução de ratos
vivos pela vagina e todo o corpo”, detalhou a vítima. O relato da mulher à
comissão, reproduzido em Así se Torturó en Chile, é dilacerador: “Obrigaram-me
a ter relações sexuais com meu pai e irmão que estavam detidos. Também a ver e
escutar as torturas de meu irmão e pai. Puseram-me na churrasqueira, fizeram
cortes com facão na minha barriga. Eu tinha 25 anos”.”
Artigo sobre a ditadura
de Pinochet de Rocío Montes no El País,
edição do Brasil, 18 setembro de 2019.
Isto é apenas um exemplo entre milhares
de torturas efetuadas pelo regime de Pinochet/CIA.
Deste golpe também
saiu uma profunda violência em termos de políticas ultraliberais em que se
encarecem ao extremo os cuidados de saúde, a educação, o sistema de pensões,
deixando um fosso abismal entre as elites militares, políticas e empresariais e
as classes remediadas e pobres. Tudo respaldado por uma constituição anti-democrática
a condizer. E, cereja em cima do bolo, uma campanha propagandística
poderosíssima que coloca o Chile como máximo expoente da economia
latino-americana. Esta visão foi continuada por todos os governos chilenos
desde a ditadura até agora, e nenhum deles conseguiu introduzir mudanças no
regime político, social e económico ultraliberal do Chile.
Como podemos ler no
comunicado da Comunidade de Chilenos Residentes no Porto, de 31 de outubro 2019,
“Tal como aconteceu em diversos países da América Latina, este sistema económico-social criou profundas
desigualdades sociais, democracias extremamente frágeis e pouca melhoria na qualidade de vida da
grande maioria das pessoas. O Chile, apesar de apresentar impressionantes
índices macroeconómicos, é um dos 10 países mais desiguais do mundo (de acordo com o Índice Gini
de 2017).
Isto é, os habitantes do Chile, apesar de saberem que vivem num país
riquíssimo, também sabem que essa riqueza está nas mãos de pouquíssimas pessoas e que custa
a miséria de grande parte da população. (...).
Esta classe política é
responsável por um favorecimento extremo do sector privado em detrimento do
sector público, ao permitir o estabelecimento e manutenção de diferentes entidades
privadas com fins lucrativos em áreas de ação prioritárias que deveriam ser
públicas, como por exemplo, o sistema de pensões do país (AFP), o sistema de seguros
de saúde (ISAPRES), as empresas de distribuição de água e eletricidade, e até o
sistema educativo, tudo em mãos de privados. A isso, junta-se o abandono total
de financiamento, com cortes de dinheiro nos sistemas de saúde e de educação
públicos, assim como a crescente corrupção existente na classe política e nas
Forças Armadas. É nesse contexto que surge a actual e expectável (e necessária)
mobilização da sociedade chilena para pedir as mudanças legislativas, jurídicas
e políticas que o país necessita.”
E assim, encontramos
o Chile envolto em gigantescas mobilizações não-violentas nas ruas,
contrastando com a reação hiper violenta do Governo, que rapidamente decretou o
recolher obrigatório, disparando contra quem estivesse nas ruas a determinada
hora (entretanto levantado), enviou os militares para a rua, fez desaparecer
centenas de pessoas e matou várias, instaurou já alguns centros de tortura
improvisados, mandou a polícia ferir os jovens manifestantes destruindo a vista
de vários, ou seja, mostrando a todos que o “espírito de Pinochet” continua
vigente.
Segundo relatos de
amigos humanistas e familiares chilenos o povo, porém, parece ter perdido o
medo que o assolou nestes últimos 30 anos. Continua a protestar nas ruas,
pedindo uma nova constituição, uma mudança radical de políticas e de paradigma
cultural, e ecoam clamores de liberdade, fraternidade e igualdade. Será o
clamor de uma verdadeira mudança? Ou apenas um desejo de ter uma vida mais
confortável em termos económicos? Será o grito de quem não aguenta mais a
violência do sistema, um grito que pode esmorecer se forem tomadas algumas
medidas paliativas, ou será uma revolução espiritual que leve a um salto
qualitativo no ser humano, em que de uma vez por todas se recuse todos os tipos
de violência: económica, religiosa, sexual, psicológica, física, racial?
Entretanto, aqueles
que não são escutados, como eu e os meus companheiros humanistas, continuaremos
a construir em nós e no nosso meio uma nova cultura, sugerida por uma suave e
profunda voz andina:
“Esta nova cultura
será o correlato de uma configuração avançada da consciência na qual todos os
tipos de violência causam repulsa. A instalação de tal estruturação da
consciência não-violenta nas sociedades será uma conquista cultural profunda.
Isso vai além das ideias ou emoções que são fracamente manifestadas nas
sociedades de hoje, para começar a fazer parte da estrutura psicossomática e
psicossocial do ser humano. Por outro lado, o equilíbrio e o desenvolvimento
individual e social podem ser alcançados se as pessoas adquirirem um sentido de
vida coerente. Pelo contrário, toda existência sem direção ou falsificada no
seu sentido gera sofrimento pessoal e coletivo. O princípio mais importante que
representa essa cultura é o seguinte: Trata os outros como queres que te tratem".
Silo, in A Comunidade para o
Desenvolvimento Humano.
Natacha Mota