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sábado, 30 de novembro de 2019

JORGE JESUS: A ENTREVISTA QUE FALTAVA


Não podia deixar passar a oportunidade de entrevistar o homem do momento no Brasil e em Portugal, Jorge Jesus, que colocou a nação rubro-negra que nem pipoca, como se diz por lá.
Fui ao Brasil num pé e vim noutro (ou como diria Jorge Jesus, fui num braço e vim noutro).
Eis a conversa.

-Antes de mais, parabéns pelo sucesso aqui no Brasil, mister. Você já conhecia o Flamengo?
-Claro que sim, é o meu queijo preferido.

-Ok... Acha que se o Palmeiras e o River tivesse contratado o Rui Vitória tudo seria diferente?
-Só sei que em 16 finais (este foi a 17.ª final que tive na minha carreira) ganhei 17 e perdi 10. Portanto, é fazer as contas.

-Sim, é fácil... O que é que você acha do samba?
-É um jogador forte no ataque posicional, mas falta-lhe profundidade.


-Falo da dança e do género musical! Já agora, li que dançou funk enquanto comia uma maçã.
-Eu nunca li um livro sobre isso. Só leio sobre jardinagem e bricolage. De resto, saiu tudo da minha cabeça.

-A verdade é que a festa do Flamengo foi muito bonita e até fez lembrar  as do Benfica no Marquês. Um mar de gente e no final houve m....
-Verdade. Até então foi espectacular. Até a Cindy pediu assim uma festa ao Uribe.

-Revelou que a música O Melhor de Mim, da Mariza o inspirou muito. Os jornalista brasileiras fazem-lhe muitas perguntas sobre ela?
-Sim, sim. Até já lhes expliquei que é uma fadista portuguesa baixinha, cabelo comprido e escuro.

-Estou a ver... Há mais alguma música que o tenha acompanhado nesta aventura?
-Sim, O Povo Que Festejas no Rio, da Amália.


-Parece que lhe querem fazer uma estátua e tudo, para meter ao lado da do Zico.
-Sim, é verdade. Se não houver espaço para as duas, tira-se a do Zico. Vai para o meu gabinete para eu pendurar o colete.


-E o futuro, mister?
-Já tive oportunidade de dizer e repito: nós apaixonamo-nos e desapaixonamo-nos.

-Já pediu algum jogador à Direção do Flamengo para a próxima época?
-Gostava de ter o Sádico Mané, do Liverpool.

-Você é o Pedro Álvares Cabral do futebol?
-Não! Ele é que é o JJ do navegadores.

in, jornal «A Bola»


sexta-feira, 29 de novembro de 2019

BLACK FRIDAY: A MODA JÁ NÃO É COMPRAR, MAS UTILIZAR

A moda já não é comprar, mas sim UTILIZAR. 
Os transportes, a roupa, os livros, os sacos das compras... no entanto, há em nós um lado irracional, antigo e vaidoso que ainda nos domina e nos conduz à compra. Compulsiva, irracional, destrutiva.
 Só isso  explica esta alienação coletiva que fez/faz gastar a cada português mais de trezentos euros em compras no Black Friday. 


Comprar, comprar, comprar... e tornar a comprar como alguém que fuma cigarro atrás de cigarro, nervoso com qualquer evento da sua vida.

É verdade que o Black Friday fica na esquina mais perigosa do ano para a nossa carteira, já que se situa na confluência da Rua do Subsídio de Natal com a Avenida Compras Natalícias, havendo tentações feitas à medida dos nosso pontos fracos em cada monta, feed do facebook, ou spot publicitário que a televisão passa com arte e comoção. No entanto, do outro lado devia de estar o bom senso, a noção que algumas comprar são mesmo desnecessárias e fúteis, além de que nos farão desequilibrarão as finanças e o humor nos próximos dois meses. 

É bem possível que seja quase impossível quebrar este colossal vício consumista, pois ele alimenta-se do nosso pior defeito - a vaidade, mas não será assim tão difícil promover uma transformação libertadora em vez de uma revolução dolorosa. UTILIZAR em vez de comprar. Temos de abandonar definitivamente essa noção esclavagista de posse. 
Amontoamos roupa nos armários, acessórios, sapatos, telemóveis, relógios, coleções de livros cuja folhas nunca virão a luz do dia. Precisamos de tornar todo esse material desfrutável, dando-lhe outros donos, aprendendo a beleza das coisas usadas e, sobretudo, partilháveis. 
Saí muito mais barato e condiz bem melhor com o espírito natalício.
GAVB
  

domingo, 24 de novembro de 2019

A DESVENTURA DE SER POLÍCIA


"O que me preocupe não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons", Martin Luther King.

Para mim, já nem precisam de ser "bons", basta que sejam justos e decentes. A indiferença da sociedade portuguesa perante os problema concretos de determinados grupos profissionais choca-me. Encolhem os ombros e proclamam a célebre frase de António Guterres "É a vida!". Não, a vida coletiva não é isto! A vida de uma sociedade, de uma população ou de um povo é intervir em prol da justiça, em benefício do bem geral; e tal significa pressionar para que determinados grupos profissionais alcancem as suas reivindicações.

Dir-me-ão que não são eles que decidem, que fazem leis, que determinam aumentos de salários. Eu contraponho que são eles que votam, que escolhe quem decide e quem os pode censurar publicamente e de modo inapelável.
Como fazer isso? Através do poder intermédio: a comunicação social.

foto de Tiago Miranda, Expresso
E que faz a comunicação social neste caso como no caso dos enfermeiros, dos médicos, dos oficiais de justiça, dos professores? Entretém-se com jogos florais, escrevendo, falando e debatendo sobre tudo o que é acessório.
Que me importa que as reivindicações dos polícias sejam acompanhadas pelo deputado do "Chega" André Ventura? Nada!! O que importa é que eles têm razão. O que importa é resolver a situação indigna em que muitos trabalham. O que releva é que temos um problema para resolver e não o estamos a saber resolver.

A população portuguesa precisa de valorizar a sua polícia e não clamar pela sua proteção quando lhe convém, mas achar bem que ganhe pouco mais que o ordenado mínimo, que tenha de comprar o material de trabalho ou tenha de fazer o seu ofício com um número tão pequeno de efetivos que a sua segurança está sempre em riscos.

É preciso que essa preguiçosa maioria silenciosa diga à maioria que elegeu que é preciso dar melhores condições de trabalho e de remuneração à polícia portuguesa, porque ela o merece, porque ela é essencial à segurança e paz que queremos, porque ela já tem sofrido de mais.

Ser polícia em Portugal quase sempre foi uma desventura: quando nos protege não faz mais do que a sua obrigação; quando se excede é um criminoso que tem de ser severamente punido; quando nos multa justamente, está a "meter nojo".
Temos realmente um problema psicológico com a noção de polícia. E não são os polícias que têm de mudar no essencial, somos nós. Precisamos de os respeitar e isso implica pressionar o governo a dar-lhes o que eles merecem, o que no caso, é, praticamente, aquilo que eles reivindicam.

Gabriel Vilas Boas


quinta-feira, 14 de novembro de 2019

PASSAR TODA A GENTE É TRAIR O ALUNO E DESRESPONSABILIZAR O ESTADO

Tentar dar tudo a todos é meio caminho para não dar nada a ninguém, aprofundando o fosso entre ricos e pobres. Aliás, devemos ter a noção que há coisas, como a passagem de um ano letivo para outro, que não se dão, pois destinam-se a ser conquistadas. 


Obviamente que passar toda a gente até ao 9.º ano de escolaridade resolve o problema do abandono escolar, da percentagem de "chumbos" que o país tem, e torna a Escola ainda mais barata. No entanto, é resolver um pequeno problema para criar um outro muito maior: a ignorância de sucessivas gerações de pessoas.

Foi este pensamento que durante anos o Estado teve em relação ao tabaco: se o tributarmos fortemente até encontramos uma interessante fonte de receita, esquecendo que a conta seria apresentada, mais tarde, ao Serviço Nacional de Saúde. 

"Investir num plano nacional de não retenções" é brincar com as palavras. Já há planos e mais planos que tentam recuperar os alunos com mais dificuldades, mas estes alunos não deixam de existir simplesmente porque esses planos foram criados. Temos de contar que há alunos que não conseguem mesmo ultrapassar as suas enormes dificuldades de aprendizagens como temos de considerar que também há alunos que, simplesmente, não as querem ultrapassar porque se estão a marimbar para a Escola.

Por outro lado, passar todos os alunos é desistir de ensinar. 
Que aluno estará atento, motivado, comprometido, sabendo que faça o que fizer tem sempre a passagem de ano garantida? 
E mesmo havendo alguns (cada vez menos com a passagem do tempo) interessados em aprender, facilmente o ambiente criado pelos «boicotadores» inviabilizará qualquer aprendizagem com o mínimo de qualidade. 

Em poucos anos, as famílias com alguns recursos económicos retirarão os seus educandos do ensino público, que ficará, deste modo, depauperado, desmotivado, abandalhado. 
A dicotomia social aprofundar-se-á de forma irreversível, com o Estado a ter de pagar dois sistemas de ensino: o miserável (do público) e o remediado (do privado), tal como já acontece, em parte, com o nosso sistema de saúde.

Por outro lado, mesmo que haja alguma exigência a partir do ensino secundário, os alunos das escolas públicas já terão perdido por completo o comboio em relação aos colegas que sempre investiram na sua formação e, por isso, ser-lhes-á totalmente impossível competir, em igualdade de circunstâncias, para a entrada no ensino superior.

Gabriel Vilas Boas  

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

EU DEIXAREI QUE MORRA EM MIM O DESEJO DE AMAR OS TEUS OLHOS



Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.


Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.

Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.


Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Ausência, Vinicius de Morais

CHILE: ENTRE A INSPIRAÇÃO DAS ALTAS MONTANHAS E O ABISMO DO ANTI-HUMANISMO



O Chile é um país fascinante. Desde o seu povo originário exemplo de luta pela liberdade, os Mapuches, passando pela sua riqueza cultural, resultado de uma profícua mistura de outros povos vindos de todos os lugares do mundo, terminando numa geografia ímpar acompanhada pela Cordilheira dos Andes, onde algumas das montanhas mais elevadas do mundo inspiraram o despertar de aspirações profundas da humanidade, e as mais belas poesias.
É uma terra de artistas por excelência, um lugar destinado a germinar criações inspiradas, inovadoras e revolucionárias. Victor Jara, Violeta Parra, Pablo Neruda, Alejandro Jodorowsky, Vicente Huidobro, Nicanor Parra, Gabriela Mistral, Humberto García Casanueva, Isabel Allende, Raúl Ruiz, Alejandro Aravena, Alberto Montt, Luis Sepúlveda, Anita Tijoux, Guillermo Lorca García-Huidobro, Rebeca Matte, Celia Castro, Claudio Bravo, Roberto Matta, são apenas alguns nomes mais conhecidos entre muitas centenas de artistas chilenos.

Nas palavras de Jorodosky, nos anos 40 e 50 o Chile era o país da poesia por excelência. Escrever e recitar poesia era prática comum e não exclusiva das elites. “Era a época da Segunda Guerra Mundial, mas o Chile não sofreria, porque estava entre as montanhas e o Oceano Pacífico. Sem televisão, longe do mundo, com muito dinheiro do cobre e do nitrato de sódio, o Chile era uma festa sem fim todo dia. (...) E, sobretudo, os melhores poetas estavam lá. Havia dois prémios Nobel, Neruda e Mistral. Muitos poetas. Então, no Chile, aconteceu um estranho milagre: a presença da poesia. Bêbados formavam coros e recitavam Neruda. A poesia era respeitada. No Chile, ser poeta era ter profissão: você era poeta. Não precisava de fazer outra coisa. Era uma vida em que descobrimos liberdade. Uma atividade intelectual, emocional e sexual intensa. Éramos jovens, no meio do paraíso – é isso que quero mostrar.” 
Cem Anos Não São Nada: A Entrevista da VICE com Alejandro Jodorowsky por Camilo Salas, 20 Março 2015.

Neste contexto, andava Salvador Allende em fervilhante atividade política: fundador do Partido Socialista Chileno, Ministro da Saúde, deputado, senador. Em 1970, candidata-se a presidente, pela Unidade Popular, formada por socialistas, comunistas, socialdemocratas. No dia 3 de novembro de 1970, Salvador Allende assumiu a Presidência do Chile. Pela primeira vez um político socialista chegou ao poder de forma democrática no mundo. Nessa época, 45% do capital do país estava nas mãos de investidores estrangeiros, os estadounidenses dominavam a exploração das minas de cobre, 80% das terras eram de propriedade de grandes latifundiários. Democraticamente eleito, Allende declarou que faria um governo socialista, implantaria a reforma agrária, nacionalizaria os bancos e as grandes empresas. E assim tentou fazer. Mas por pouco tempo.

Propunha-se uma mudança de paradigma social e político, em que os pobres começaram a entrar nas escolas, os trabalhadores começaram a ter direitos, o sistema de saúde ganhou recursos, nacionalizaram-se companhias de exploração de recursos naturais.
“Durante o curto período em que durou o governo do presidente chileno Salvador Allende, da Unidade Popular, floresceram as artes, as letras, a cultura e a educação no formoso país andino. No mundo da cultura surgiram infinidade de grupos artísticos, relacionados com a música, o cinema e a pintura. Havia uma grande efervescência e entusiasmo. Os estudantes universitários trabalhavam como voluntários durante as suas férias, viajando por todo o país e organizando campanhas de alfabetização entre os trabalhadores e no rural com os camponeses. No mundo rural dinamizavam culturalmente os moradores e labregos. A educação em todos os níveis educativos superava-se cada dia, ao contar com planos de estudo dinâmicos e modernos.” Salvador Allende, um político digno por José Paz Rodrigues a 6 de Setembro de 2017 in Portal Galego da Língua

Tais propostas e ações políticas provocaram uma forte reação contrária violenta nas elites chilenas e nos seus correligionário nos Estados Unidos. Esta potência mundial não podia permitir o possível sucesso, ainda que com erros e dificuldades, de um modelo socialista democrático, pois isso iria destruir o seu próprio modelo social, baseado na concepção zoológica da lei do mais forte, no empreendedorismo individual e no domínio da banca sobre os sistemas de saúde e educativo.

O violento golpe militar de 11 de setembro de 1973 derrubou o regime democrático constitucional do Chile e o seu presidente, tendo sido articulado conjuntamente por oficiais da marinha e do exército chileno, com apoio militar e financeiro do governo dos Estados Unidos e da CIA, e encabeçado pelo general Augusto Pinochet, que se proclamou presidente. Deste dramático episódio surgiu uma ditadura feroz que produziu: perseguições, torturas e assassínio de milhares de membros de partidos, organizações ou instituições de cariz progressista. “Uma mulher que foi detida em 1974 na capital chilena e permaneceu dois anos presa sem nenhum processo relatou que “por causa do estupro cometido pelos torturadores, eu fiquei grávida e abortei na cadeia”. “Sofri choques elétricos, fui pendurada, posta no pau de arara, "submarinos" [ameaça de afogamento], simulação de fuzilamento, queimaduras com charutos. Obrigaram-me a tomar drogas, sofri estupro e assédio sexual com cães, a introdução de ratos vivos pela vagina e todo o corpo”, detalhou a vítima. O relato da mulher à comissão, reproduzido em Así se Torturó en Chile, é dilacerador: “Obrigaram-me a ter relações sexuais com meu pai e irmão que estavam detidos. Também a ver e escutar as torturas de meu irmão e pai. Puseram-me na churrasqueira, fizeram cortes com facão na minha barriga. Eu tinha 25 anos”.” 
Artigo sobre a ditadura de Pinochet de Rocío Montes no El País, edição do Brasil, 18 setembro de 2019. 

Isto é apenas um exemplo entre milhares de torturas efetuadas pelo regime de Pinochet/CIA.

Deste golpe também saiu uma profunda violência em termos de políticas ultraliberais em que se encarecem ao extremo os cuidados de saúde, a educação, o sistema de pensões, deixando um fosso abismal entre as elites militares, políticas e empresariais e as classes remediadas e pobres. Tudo respaldado por uma constituição anti-democrática a condizer. E, cereja em cima do bolo, uma campanha propagandística poderosíssima que coloca o Chile como máximo expoente da economia latino-americana. Esta visão foi continuada por todos os governos chilenos desde a ditadura até agora, e nenhum deles conseguiu introduzir mudanças no regime político, social e económico ultraliberal do Chile.

Como podemos ler no comunicado da Comunidade de Chilenos Residentes no Porto, de 31 de outubro 2019, “Tal como aconteceu em diversos países da América Latina, este sistema económico-social criou profundas desigualdades sociais, democracias extremamente frágeis e pouca melhoria na qualidade de vida da grande maioria das pessoas. O Chile, apesar de apresentar impressionantes índices macroeconómicos, é um dos 10 países mais desiguais do mundo (de acordo com o Índice Gini de 2017). 
Isto é, os habitantes do Chile, apesar de saberem que vivem num país riquíssimo, também sabem que essa riqueza está nas mãos de pouquíssimas pessoas e que custa a miséria de grande parte da população. (...).

Esta classe política é responsável por um favorecimento extremo do sector privado em detrimento do sector público, ao permitir o estabelecimento e manutenção de diferentes entidades privadas com fins lucrativos em áreas de ação prioritárias que deveriam ser públicas, como por exemplo, o sistema de pensões do país (AFP), o sistema de seguros de saúde (ISAPRES), as empresas de distribuição de água e eletricidade, e até o sistema educativo, tudo em mãos de privados. A isso, junta-se o abandono total de financiamento, com cortes de dinheiro nos sistemas de saúde e de educação públicos, assim como a crescente corrupção existente na classe política e nas Forças Armadas. É nesse contexto que surge a actual e expectável (e necessária) mobilização da sociedade chilena para pedir as mudanças legislativas, jurídicas e políticas que o país necessita.”

E assim, encontramos o Chile envolto em gigantescas mobilizações não-violentas nas ruas, contrastando com a reação hiper violenta do Governo, que rapidamente decretou o recolher obrigatório, disparando contra quem estivesse nas ruas a determinada hora (entretanto levantado), enviou os militares para a rua, fez desaparecer centenas de pessoas e matou várias, instaurou já alguns centros de tortura improvisados, mandou a polícia ferir os jovens manifestantes destruindo a vista de vários, ou seja, mostrando a todos que o “espírito de Pinochet” continua vigente.

Segundo relatos de amigos humanistas e familiares chilenos o povo, porém, parece ter perdido o medo que o assolou nestes últimos 30 anos. Continua a protestar nas ruas, pedindo uma nova constituição, uma mudança radical de políticas e de paradigma cultural, e ecoam clamores de liberdade, fraternidade e igualdade. Será o clamor de uma verdadeira mudança? Ou apenas um desejo de ter uma vida mais confortável em termos económicos? Será o grito de quem não aguenta mais a violência do sistema, um grito que pode esmorecer se forem tomadas algumas medidas paliativas, ou será uma revolução espiritual que leve a um salto qualitativo no ser humano, em que de uma vez por todas se recuse todos os tipos de violência: económica, religiosa, sexual, psicológica, física, racial?

Entretanto, aqueles que não são escutados, como eu e os meus companheiros humanistas, continuaremos a construir em nós e no nosso meio uma nova cultura, sugerida por uma suave e profunda voz andina:
Esta nova cultura será o correlato de uma configuração avançada da consciência na qual todos os tipos de violência causam repulsa. A instalação de tal estruturação da consciência não-violenta nas sociedades será uma conquista cultural profunda. Isso vai além das ideias ou emoções que são fracamente manifestadas nas sociedades de hoje, para começar a fazer parte da estrutura psicossomática e psicossocial do ser humano. Por outro lado, o equilíbrio e o desenvolvimento individual e social podem ser alcançados se as pessoas adquirirem um sentido de vida coerente. Pelo contrário, toda existência sem direção ou falsificada no seu sentido gera sofrimento pessoal e coletivo. O princípio mais importante que representa essa cultura é o seguinte: Trata os outros como queres que te tratem". 
Silo, in A Comunidade para o Desenvolvimento Humano.

Natacha Mota



domingo, 10 de novembro de 2019

ÀS VEZES O AMOR NÃO BASTA

A 10 de novembro de 2009 Robert Enke saiu de casa pela manhã e disse à mulher que ia chegar tarde. Tinha duas sessões de treino marcadas com o treinador de guarda-redes do Hannover, que não esperasse por ele. Teresa acreditou.

Só que ao final do dia Enke não apareceu em casa e Teresa ficou preocupada. Telefonou ao treinador de guarda-redes e soube que afinal não tinha havido qualquer treino marcado. Soaram os alertas, Teresa temeu o pior. Ligou de seguida ao empresário de Robert, em pânico. Ele pediu-lhe para ver em casa se o marido lhe tinha deixado algum bilhete e ela encontrou uma carta no quarto. "Querida Terri..."


Desejou nunca ter saído do Benfica, onde era feliz. Acabou por rumar à Turquia, ao Fenerbahhçe, por empréstimo, mas ao cabo de apenas 13 dias estava de regresso a Barcelona. Depois de uma derrota por 3-0, em que os adeptos lhe atiraram objetos da bancada e o ofenderam verbalmente, Enke não aguentou. Foi nesta fase que começou a ser seguido pelo dr Makser. Com a autoestima muito em baixo rumou ao Tenerife. 


Em 2004 regressou à Alemanha, assinando pelo Hannover. Foi este o clube que o catapultou para a seleção da Alemanha, mas nem isso o fazia sorrir. Enke vivia com medo do fracasso, da crítica, de perder o futebol e a filha. Havia dias em que não queria sair da cama, em que se sentia mal, muito mal. Ninguém no clube sequer suspeitou, todos pensavam que não era muito falador porque era uma pessoa reservada. Nada mais.


O Dr. Makser queria interná-lo, mas ele dizia que não, que estava bem. Mas não estava. Enke achou que apenas a morte o podia livrar daquele fardo e marcou encontro com ela naquele final de tarde do dia 10 de novembro de 2009. "As vezes o amor não basta", constatou Teresa, que sempre fez de tudo para resgatar o marido da tristeza em que estava atolado.

Depressão

Falar em depressão no futebol há 10 anos era como falar de homossexualidade. Era tabú. Ninguém admitia estar triste, psicologicamente doente, pois havia o medo de ser considerado fraco, de perder o lugar na equipa ou de ser humilhado pelos adeptos.


Mas nos últimos anos inúmeros atletas têm vindo a público falar sobre tema. André Gomes, no Barcelona, passou por momentos complicados; Gianluigi Buffon, Gary Neville, Iniesta e mais recentemente Marcelo já confessaram ter passado por momentos complicados. Se hoje fosse vivo Enke saberia que não estava sozinho... 
in Record


sábado, 9 de novembro de 2019

UMA SOLIDARIEDADE COVARDE, INDIGNA E VERGONHOSA

«Os autores das bárbaras agressões estão aqui nesta sala, disso não tenho dúvidas. Só não sei é quem foram ou se foram todos, porque ninguém os conseguiu identificar. Mas toda a gente sabe que vocês sabem quem foi que fez aquilo

«Com que sentido de justiça declaram que não sabiam, que não viram. Como permitem que se faça isto, que se fechem no corporativismo?»

Foi com estas sentidas palavras, próprias de um homem bom e justo, que sabe que não conseguiu fazer justiça, que o juiz do Tribunal de Guimarães acabou por absolver onze efetivos do Corpo de Intervenção da PSP, acusados de agredir e cegar um adepto do Boavista em outubro de 2014. 

Na sua sentença de absolvição jurídica, o juiz do Tribunal de Guimarães deixou naquele corpo de elite da PSP uma marca de culpa, vergonha, indignidade e covardia que jamais aqueles homens conseguirão apagar. 

Aproveitando as deficiência da lei, que absolve o agressor quando não os consegue identificar, preferindo deixar de encarcerar um criminoso a condenar à prisão um inocente, estes agentes fizeram um pacto de silêncio e saíram do tribunal sem a pena que deviam.

Num tempo tão voraz e pobre de memória como aquele que vivemos é certo que, em poucos meses, esta indignidade vergonhosa será enterrada no enorme buraco negro do esquecimento coletivo, a não ser que haja um juiz superior que inverta a lógica da justiça ou alguém dentro do comando da PSP que resolva repor a honra da corporação e do Corpo de Intervenção. 
Nãao é possível devolver a visão àquele infeliz adepto de futebol, não é possível pagar-lhe uma indemnização devida, mas é possível afastar esta gente do serviço público, pois eles não são dignos de representar o Estado português. Eles usam as mesmas estratégias dos criminosos, de gente sem honra, dignidade ou vergonha na cara. O Estado português não pode ser isto! 
Caso a situação se mantenha nesta covarde atitude, sujará para sempre todos os superiores hierárquicos desta gente pequenina que há dias se sentou no banco dos réus, numa Tribunal de Guimarães. 

O Presidente da República de Portugal gosta imenso de exercer a sua magistratura de influência, mas isso implica também fazer cara feia a quem manda na PSP, obrigando-os a exercer as sua funções com ética, responsabilidade e honra.
Gabriel Vilas Boas