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segunda-feira, 11 de novembro de 2019

CHILE: ENTRE A INSPIRAÇÃO DAS ALTAS MONTANHAS E O ABISMO DO ANTI-HUMANISMO



O Chile é um país fascinante. Desde o seu povo originário exemplo de luta pela liberdade, os Mapuches, passando pela sua riqueza cultural, resultado de uma profícua mistura de outros povos vindos de todos os lugares do mundo, terminando numa geografia ímpar acompanhada pela Cordilheira dos Andes, onde algumas das montanhas mais elevadas do mundo inspiraram o despertar de aspirações profundas da humanidade, e as mais belas poesias.
É uma terra de artistas por excelência, um lugar destinado a germinar criações inspiradas, inovadoras e revolucionárias. Victor Jara, Violeta Parra, Pablo Neruda, Alejandro Jodorowsky, Vicente Huidobro, Nicanor Parra, Gabriela Mistral, Humberto García Casanueva, Isabel Allende, Raúl Ruiz, Alejandro Aravena, Alberto Montt, Luis Sepúlveda, Anita Tijoux, Guillermo Lorca García-Huidobro, Rebeca Matte, Celia Castro, Claudio Bravo, Roberto Matta, são apenas alguns nomes mais conhecidos entre muitas centenas de artistas chilenos.

Nas palavras de Jorodosky, nos anos 40 e 50 o Chile era o país da poesia por excelência. Escrever e recitar poesia era prática comum e não exclusiva das elites. “Era a época da Segunda Guerra Mundial, mas o Chile não sofreria, porque estava entre as montanhas e o Oceano Pacífico. Sem televisão, longe do mundo, com muito dinheiro do cobre e do nitrato de sódio, o Chile era uma festa sem fim todo dia. (...) E, sobretudo, os melhores poetas estavam lá. Havia dois prémios Nobel, Neruda e Mistral. Muitos poetas. Então, no Chile, aconteceu um estranho milagre: a presença da poesia. Bêbados formavam coros e recitavam Neruda. A poesia era respeitada. No Chile, ser poeta era ter profissão: você era poeta. Não precisava de fazer outra coisa. Era uma vida em que descobrimos liberdade. Uma atividade intelectual, emocional e sexual intensa. Éramos jovens, no meio do paraíso – é isso que quero mostrar.” 
Cem Anos Não São Nada: A Entrevista da VICE com Alejandro Jodorowsky por Camilo Salas, 20 Março 2015.

Neste contexto, andava Salvador Allende em fervilhante atividade política: fundador do Partido Socialista Chileno, Ministro da Saúde, deputado, senador. Em 1970, candidata-se a presidente, pela Unidade Popular, formada por socialistas, comunistas, socialdemocratas. No dia 3 de novembro de 1970, Salvador Allende assumiu a Presidência do Chile. Pela primeira vez um político socialista chegou ao poder de forma democrática no mundo. Nessa época, 45% do capital do país estava nas mãos de investidores estrangeiros, os estadounidenses dominavam a exploração das minas de cobre, 80% das terras eram de propriedade de grandes latifundiários. Democraticamente eleito, Allende declarou que faria um governo socialista, implantaria a reforma agrária, nacionalizaria os bancos e as grandes empresas. E assim tentou fazer. Mas por pouco tempo.

Propunha-se uma mudança de paradigma social e político, em que os pobres começaram a entrar nas escolas, os trabalhadores começaram a ter direitos, o sistema de saúde ganhou recursos, nacionalizaram-se companhias de exploração de recursos naturais.
“Durante o curto período em que durou o governo do presidente chileno Salvador Allende, da Unidade Popular, floresceram as artes, as letras, a cultura e a educação no formoso país andino. No mundo da cultura surgiram infinidade de grupos artísticos, relacionados com a música, o cinema e a pintura. Havia uma grande efervescência e entusiasmo. Os estudantes universitários trabalhavam como voluntários durante as suas férias, viajando por todo o país e organizando campanhas de alfabetização entre os trabalhadores e no rural com os camponeses. No mundo rural dinamizavam culturalmente os moradores e labregos. A educação em todos os níveis educativos superava-se cada dia, ao contar com planos de estudo dinâmicos e modernos.” Salvador Allende, um político digno por José Paz Rodrigues a 6 de Setembro de 2017 in Portal Galego da Língua

Tais propostas e ações políticas provocaram uma forte reação contrária violenta nas elites chilenas e nos seus correligionário nos Estados Unidos. Esta potência mundial não podia permitir o possível sucesso, ainda que com erros e dificuldades, de um modelo socialista democrático, pois isso iria destruir o seu próprio modelo social, baseado na concepção zoológica da lei do mais forte, no empreendedorismo individual e no domínio da banca sobre os sistemas de saúde e educativo.

O violento golpe militar de 11 de setembro de 1973 derrubou o regime democrático constitucional do Chile e o seu presidente, tendo sido articulado conjuntamente por oficiais da marinha e do exército chileno, com apoio militar e financeiro do governo dos Estados Unidos e da CIA, e encabeçado pelo general Augusto Pinochet, que se proclamou presidente. Deste dramático episódio surgiu uma ditadura feroz que produziu: perseguições, torturas e assassínio de milhares de membros de partidos, organizações ou instituições de cariz progressista. “Uma mulher que foi detida em 1974 na capital chilena e permaneceu dois anos presa sem nenhum processo relatou que “por causa do estupro cometido pelos torturadores, eu fiquei grávida e abortei na cadeia”. “Sofri choques elétricos, fui pendurada, posta no pau de arara, "submarinos" [ameaça de afogamento], simulação de fuzilamento, queimaduras com charutos. Obrigaram-me a tomar drogas, sofri estupro e assédio sexual com cães, a introdução de ratos vivos pela vagina e todo o corpo”, detalhou a vítima. O relato da mulher à comissão, reproduzido em Así se Torturó en Chile, é dilacerador: “Obrigaram-me a ter relações sexuais com meu pai e irmão que estavam detidos. Também a ver e escutar as torturas de meu irmão e pai. Puseram-me na churrasqueira, fizeram cortes com facão na minha barriga. Eu tinha 25 anos”.” 
Artigo sobre a ditadura de Pinochet de Rocío Montes no El País, edição do Brasil, 18 setembro de 2019. 

Isto é apenas um exemplo entre milhares de torturas efetuadas pelo regime de Pinochet/CIA.

Deste golpe também saiu uma profunda violência em termos de políticas ultraliberais em que se encarecem ao extremo os cuidados de saúde, a educação, o sistema de pensões, deixando um fosso abismal entre as elites militares, políticas e empresariais e as classes remediadas e pobres. Tudo respaldado por uma constituição anti-democrática a condizer. E, cereja em cima do bolo, uma campanha propagandística poderosíssima que coloca o Chile como máximo expoente da economia latino-americana. Esta visão foi continuada por todos os governos chilenos desde a ditadura até agora, e nenhum deles conseguiu introduzir mudanças no regime político, social e económico ultraliberal do Chile.

Como podemos ler no comunicado da Comunidade de Chilenos Residentes no Porto, de 31 de outubro 2019, “Tal como aconteceu em diversos países da América Latina, este sistema económico-social criou profundas desigualdades sociais, democracias extremamente frágeis e pouca melhoria na qualidade de vida da grande maioria das pessoas. O Chile, apesar de apresentar impressionantes índices macroeconómicos, é um dos 10 países mais desiguais do mundo (de acordo com o Índice Gini de 2017). 
Isto é, os habitantes do Chile, apesar de saberem que vivem num país riquíssimo, também sabem que essa riqueza está nas mãos de pouquíssimas pessoas e que custa a miséria de grande parte da população. (...).

Esta classe política é responsável por um favorecimento extremo do sector privado em detrimento do sector público, ao permitir o estabelecimento e manutenção de diferentes entidades privadas com fins lucrativos em áreas de ação prioritárias que deveriam ser públicas, como por exemplo, o sistema de pensões do país (AFP), o sistema de seguros de saúde (ISAPRES), as empresas de distribuição de água e eletricidade, e até o sistema educativo, tudo em mãos de privados. A isso, junta-se o abandono total de financiamento, com cortes de dinheiro nos sistemas de saúde e de educação públicos, assim como a crescente corrupção existente na classe política e nas Forças Armadas. É nesse contexto que surge a actual e expectável (e necessária) mobilização da sociedade chilena para pedir as mudanças legislativas, jurídicas e políticas que o país necessita.”

E assim, encontramos o Chile envolto em gigantescas mobilizações não-violentas nas ruas, contrastando com a reação hiper violenta do Governo, que rapidamente decretou o recolher obrigatório, disparando contra quem estivesse nas ruas a determinada hora (entretanto levantado), enviou os militares para a rua, fez desaparecer centenas de pessoas e matou várias, instaurou já alguns centros de tortura improvisados, mandou a polícia ferir os jovens manifestantes destruindo a vista de vários, ou seja, mostrando a todos que o “espírito de Pinochet” continua vigente.

Segundo relatos de amigos humanistas e familiares chilenos o povo, porém, parece ter perdido o medo que o assolou nestes últimos 30 anos. Continua a protestar nas ruas, pedindo uma nova constituição, uma mudança radical de políticas e de paradigma cultural, e ecoam clamores de liberdade, fraternidade e igualdade. Será o clamor de uma verdadeira mudança? Ou apenas um desejo de ter uma vida mais confortável em termos económicos? Será o grito de quem não aguenta mais a violência do sistema, um grito que pode esmorecer se forem tomadas algumas medidas paliativas, ou será uma revolução espiritual que leve a um salto qualitativo no ser humano, em que de uma vez por todas se recuse todos os tipos de violência: económica, religiosa, sexual, psicológica, física, racial?

Entretanto, aqueles que não são escutados, como eu e os meus companheiros humanistas, continuaremos a construir em nós e no nosso meio uma nova cultura, sugerida por uma suave e profunda voz andina:
Esta nova cultura será o correlato de uma configuração avançada da consciência na qual todos os tipos de violência causam repulsa. A instalação de tal estruturação da consciência não-violenta nas sociedades será uma conquista cultural profunda. Isso vai além das ideias ou emoções que são fracamente manifestadas nas sociedades de hoje, para começar a fazer parte da estrutura psicossomática e psicossocial do ser humano. Por outro lado, o equilíbrio e o desenvolvimento individual e social podem ser alcançados se as pessoas adquirirem um sentido de vida coerente. Pelo contrário, toda existência sem direção ou falsificada no seu sentido gera sofrimento pessoal e coletivo. O princípio mais importante que representa essa cultura é o seguinte: Trata os outros como queres que te tratem". 
Silo, in A Comunidade para o Desenvolvimento Humano.

Natacha Mota



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