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segunda-feira, 30 de novembro de 2020

MIGUEL TORGA CHORA A MORTE DE FERNANDO PESSOA


“Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era.”


Miguel Torga, in Diário I (3-12-1935)


domingo, 29 de novembro de 2020

SOU UM MENINO CUJO ENVELOPE SE GASTOU

A Velhice

Devo estar a ficar velho: as Paulas Cristinas têm mais de 20 anos, os Brunos Miguéis já vão nos 15, as Kátias e as Sónias deram lugar a Martas, Catarinas, Marianas. A maior parte dos polícias são mais velhos do que eu. 

Comecei a gostar de sopa de Nabiças. A apetecer-me voltar mais cedo para casa. A observar, no espelho matinal, desabamentos, rugas imprevistas, a boca entre parêntesis cada vez mais fundos. A ver os meus retratos de criança como se fosse um estranho. A deixar de me preocupar com o futebol, eu que sabia de cor os nomes de todos os jogadores do Benfica, desde o inimitável Fernando da Conceição da Cruz, o Pardalito do Bairro da Liberdade ao glorioso Domiciano Barrocal Gomes Cavém passando por José Pinto de Carvalho Águas, o Grande Capitão e Mário Esteves Coluna, o Monstro, que afirmou numa entrevista ser o Victor Macture dos estádios. 

A desinteressar-me dos gelados do Santini que o Dinis Machado, de cigarrilha nas gengivas achava peitorais. 


Se calhar, daqui a pouco, uso um sapato num pé e uma pantufa de xadrez no outro e vou, de bengala, contar os pombos do Príncipe Real que circulam, de mãos atrás das costas como os chefes de repartição, em torno do cedro. Ou jogar sueca, com colegas de boina, na Alameda Afonso Henriques de manilha suspensa no ar, numa atitude de Estátua de Liberdade.
Ou internam-me no Meu Lar, Recebe Idosos Inválidos & Convalescentes a fim de passar as tardes à janela em casaco de pijama, num poltrona de orelhas com os bolsos cheios de palitos, capicuas e migalhas de bolacha Maria, visitado na Páscoa por sobrinhos apressados e saquinhos de amêndoas. 
Quando der por mim, encontro o meu sorriso na mesinha de cabeceira, a troçar-me, num copo de água, com 32 dentes de plástico. Reconhecerei o meu lugar à mesa pelos frasquinhos dos medicamentos sobre a toalha, que me farão lembrar as bandeiras que os exploradores antigos, vestidos de urso como os automobilistas dos tempos heroicos, cravavam nos gelos polares. Serei como aquela prima idosa surdíssima, outrora bonita, com enorme telefonia à cabeceira a quem o enfermeiro que lhe dava as injeções para o reumático comentou 
    - Que lindo rádio que a senhora tem!
    E ela num suspiro de nádegas ao léu à espera da seringa, orgulhosa e coquete
   - Havia de o ter visto aqui há quarenta anos.

Devo estar a ficar velho. E no entanto, sem que me dê conta, ainda me acontece apalpar a algibeira à procura da fisga. Ainda gostava de ter um canivete de madrepérola com sete lâminas, saca-rolhas, tesoura, abre-latas e chave de parafusos. Ainda queria que o meu pai me comprasse na feira de Nelas, um espelhinho com a fotografia da Yvonne de Carlo, em fato de banho, do outro lado. Ainda tenho vontade de escrever o meu nome depois de embaciar o vidro com o hálito. Ainda caminho pela borda do passeio sem pisar o intervalo das pedras. Ainda me apetecia que o meu avô que viesse fazer uma festa à cama. ainda gosto de resolver os hieróglifos comprimidos dos almanaques da Bertrand do sótão organizados pela Sra. Dona Maria Fernandes Costa e de escrever e de escrever nas soluções, quando a pergunta é Grande Escritor Português Infelizmente Já Falecido, o nome do emérito poeta General Fernandes Costa. 

Pensando bem (e digo isto ao espelho), não sou um senhor de idade que conservou o coração de menino. Sou um menino cujo envelope se gastou.
António Lobo Antunes

sábado, 28 de novembro de 2020

PASSAR OS CONTRATADOS A EFETIVOS RESOLVERIA O PROBLEMA DA FALTA DE PROFESSORES?

 


Filinto Lima acredita que sim! Todavia é possível que não seja bem assim! O grande trunfo desta medida seria oferecer aos professores contratados uma garantia de emprego a longo prazo, mas acredito que isso não seja suficiente, pois manter-se-iam os dois grandes obstáculos que tornam a profissão de professor tão pouco atrativa entre os jovens.

O primeiro obstáculo é a questão monetária. Um professor que entra na carreira pouco mais ganha que um professor contratado. Ora, não são mais 100 euros que levarão uma professora de Penafiel a fazer as malas e a trabalhar em Sintra. Depois de fazer as contas, facilmente chegaria à conclusão que para manter o mesmo nível de vida que um salário mínimo lhe proporciona perto de casa precisar de ganhar bem mais do que o Estado lhe promete oferecer. O mais certo seria pagar para trabalhar, ficar longe da família e aumentar os encargos indiretos. 

Outra questão é o da valorização social da profissão. Os jovens não seguem os cursos de educação apenas porque percecionam que não estes não oferecem grandes saídas profissionais. Eles veem todos os dias o trabalho dos seus professores, o modo como muitos pais os desconsideram, a falta de respeito com que as suas opiniões são deliberadamente ignoradas. Eles observam a desilusão cravada nos olhos de quem os ensina e sabem que não querem ir por ali. 


Faltam professores em Portugal, mas não a todo o tipo de alunos. Faltam professores, sobretudo, aos alunos pobres. Alunos cujos pais não têm voz nem poder. Faltam professores às famílias que ainda não perceberam que a Escola, uma boa escola pública, é o único passaporte que têm para subir socialmente. 

Hoje a comunidade docente está muda e cansada. Espera que o tempo passe, sem contaminações, até à reforma. Deixou de lutar porque já não acredita na luta e porque sente que luta por gente ingrata. 

A Escola pública continuará a ter bons professores e bons alunos, mas estes serão cada vez menos. Serão apresentados como troféus do poder político, uma espécie de heróis modernos, e servirão apenas para legitimar o aprofundamento do fosso entre ricos e pobres. Tal como acontece já um pouco com os médicos, os professores terão apenas boas condições de trabalho, mas não remuneratórias, nos colégios, tornando-se uma espécie de proletariado dos ricos.

A sociedade será mais desigual porque a Escola se torna, a cada dia que passa, mais desigual.

Portugal produz riqueza suficiente para que este não seja o caminho, mas a teia está de tal modo bem montada, que serão os mais prejudicados a defendê-la, com unhas e dentes, e a executá-la, em parte. 

Um país que se preze, que queira ter orgulho em si, tem de querer uma escola pública de qualidade. Esta só se consegue com bons professores. Estes têm de se sentir considerados, justamente remunerados e livres nas suas decisões.

GAVB

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

AD10S, DIEGO, O MAIS BELO DEUS DO OLIMPO DO FUTEBOL



Maradona foi uma espécie de Che Guevara do futebol.
O herói romântico que obrigou milhões a apaixonarem-se pelo futebol. Maradona foi um génio deste fabuloso desporto porque a sua relação com a bola era mágica e fazia-nos sonhar. Com ele, passou a existir alguém que nos punha no corpo e na alma um sorriso de prazer ao ver um jogo de futebol.

FABULOSO, GÉNIO, MÁGICO... tudo parece pouco para definir o mais brilhante jogador que vi jogar.



Maradona não foi um jogador feito pelo marketing porque era tão rebelde, tão puro, tão disruptivo que foi o marketing que teve de se ajustar a ele.

Além das fintas, dos golos, dos passes, da magia com que embelezava cada ação em campo, Maradona empunhava outras bandeiras, apesar de ser o deus mais imperfeito da galáxia. 

Sem pejo, um dia afirmou: "Fui, sou e serei sempre um drogado!" A droga embaciou-lhe a apoteose, mas o não suficiente para lhe tirar a lugar no Olimpo.


Uma das facetas que mais admirava em Diego Armando Maradona era a coragem com que afrontava os poderosos. No futebol e fora dele. Um pouco como Che, apenas com a bola nos pés, conquistou quase sozinho o Mundial de 86 para a sua amada Argentina; enfrentou e venceu os poderosos clubes do norte de Itália (Inter, Juventus e Milan), ao comando do ultra-humilhado Nápoles, no final da década de oitenta, do século XX.

Ao contrário de Messi, por exemplo, Maradona recusou viver do lado confortável da vida, e por isso, deixou Barcelona para triunfar em Nápoles, clube mediano do sul da Itália. 


Apesar do seu génio, da sua ousadia quase suicida, Maradona tinha a noção de equipa. A maneira como capitaneava os seus colegas da seleção azul celeste era de um general tão astuto quanto era valente o melhor dos seus guerrilheiros. A maneira sublime como guindou a sua Argentina à final do Mundial Itália 90 revela um líder perfeitamente conhecedor das forças e fraquezas dos seus e dos adversários. Eliminou o Brasile depois a anfitrião Itália até tombar perante um duvidoso penalty, assinalado a cinco minutos do final do jogo contra a RFA.



No campo ele era mais do que magia, arte ou vitórias. Ele era o orgulho de 40 milhões de argentinos que se sentiam vingados da guerra das Maldivas na maneira sublime, poética e irregular como Maradona derrotou Inglaterra no Mundial de 86, o jogo onde mago d futebol argentino marcou os dois golos mais célebres da sua carreira: o mais polémico - o da mão de Deus - e o mais brilhante, aquele em que finta meia equipa inglesa e afunda o porta-aviões do Reino Unido.


Maradona sabia o que valia, mas também de onde vinha. Costumava dizer que nascera num bairro privado... privado de água, privado de luz, privado de telefone.Talvez por isso, em muitas ocasiões o seu combustível fosse a raiva. Um raiva que não o deixava ser Beethoven, como Pelé, mas que lhe permitia ser ser, ao mesmo tempo, Keith Rchards, Ron Wood e Bono.


Vê-lo jogar teve para mim a transcendência mística do concerto dos Queen em Wembley. Felizmente durou ma década e não apenas mas horas.  


Diego, aquele D10S imperfeito e sedutor que nos drogou para sempre com a magia do futebol, recolheu definitivamente ao Olimpo.

Certo dia, a sua compatriota Mercedes Sosa cantou com paixão "gracias à la vida qe nos ha dado tanto". Hoje e sempre, todos aqueles que amam o futebol fazem uma pequena divagação literária ao verso de Mercedes e inscrevem na lápide de Maradona

"Gracias a DIEGO, que nos ha dado tanto!"

 

Gabriel Vilas Boas

domingo, 22 de novembro de 2020

UM SENHOR RICO E O SEU ESCRAVO

   

 Há quase dois mil anos o Vesúvio cuspiu revolta em forma de lava e as suas cinzas incandescentes congelaram Pompeia para a eternidade. 

  Ao longo dos séculos, arqueólogos e historiadores foram destapando, pacientemente, as histórias que o vulcão cobrira de cinza e morte. Recentemente, vieram à luz do dia os restos mortais de dois homens, deitados lado a lado, iguais na morte, desiguais em vida. 

     As investigações permitiram concluir que um deles, o mais velho, seria um senhor rico e com status, pois os vestígios de um manto de lã foram encontrados junto ao seu pescoço; já o outro, mais jovem, com idade provável entre os 18 e os 23 anos, seria um escravo, dado que as vértebras esmagadas indiciavam trabalho braçal. 


  Olho novamente a fotografia do extraordinário achado arqueológico e não deixo de pensar como a natureza, de tempos a tempos, repreende o Homem pelas distinções arbitrárias e abusivas que cria entre si.

     Não é apenas a morte que nos iguala e nos coloca no nosso lugar. Também a Natureza é uma lição silenciosa sobre a maneira como agimos entre pares. O modo como a consumimos, como a desejamos sequestrar, fazê-la um condomínio privado do nosso egoísmo tonto, diz muito da falta de inteligência emocional de muitos de nós e da nossa incapacidade de nos situar no tempo, no espaço e na História.

     A lava dos vulcões ou as marés vivas que nos lambem as casas plantadas sobre as dunas são importantes lições que teimamos em ignorar. A Natureza detesta que lhe pisem os calos, por isso sacode, cada vez com mais frequência, todas as tentativas parolas de escravização humana. Tal como aconteceu em Pompeia, se continuarmos a desafiar as suas leis, em breve seremos apenas material arqueológico.

GAVB

domingo, 15 de novembro de 2020

ELA NÃO PODE ESTAR BOA DA CABEÇA!


 Cláudia Lopes, jornalista da TVI, disse numa entrevista que a pessoa mais importante da sua vida é o marido e só depois o filho.

Ciente ou não da polémica que essa afirmação iria causar, explicitou o seu raciocínio: « Há aqui uma razão muito simples que é: tu não podes gostar mais do teu filho do que de quem te ajuda a criá-lo, porque isto de criar uma criança não é tarefa nada fácil e, segundo ponto, acho que o meu filho é uma criança mais feliz se o pai e a mãe forem felizes».

Como seria de esperar, Cláudia Lopes foi trucidada. 

"Os meus filhos sempre em primeiro lugar. Que mulher é esta?" ou "Não pode estar bem da cabeça. Marido não é família, não tem o nosso sangue. Filho é o nosso sangue, os nossos ossos, o nosso coração a bater constantemente a cada segundo que respiramos. Talvez esta pessoa mude de ideias quando o marido se lembrar de a trair e trocar por outra".

Cláudia Lopes manifestou algum sentimento negativo? Disse odiar alguém? Não, ela apenas hierarquizou os seus sentimentos. E tem todo o direito a isso. E tem o direito a não ser vilipendiada. 

Quem somos nós para definir e hierarquizar os sentimentos dos outros? É completamente desnecessário contra-argumentar, mas todos conhecemos inúmeros exemplos de filhos que abandonam os pais em hospitais ou lares, que não os visitam durante décadas ou apenas se interessam pelo seu dinheiro ou bens, de uma maneira despudorada. São também vários os exemplos de casais que se amam até à morte com uma ternura comovedora. 

O que me indigna nestes comentários é que eles são uma espécie de estética do sentimento e quem não se encaixe nela é insultado, perseguido, ridicularizado. 
Como seriam estas mulheres se os seus maridos lhes declarassem que as amam em primeiro lugar e só depois aos filhos? Também lhes diriam que estavam maluquinhos? Que eram tolos, pois o mais certos era traí-los daí a uns dias? 

Amar não é uma competição. Ama-se o marido, os filhos, os pais, os amigos de diferentes modos. Não temos de hierarquizar esses amores, como se eles competissem num qualquer campeonato do sentimento.

E antes de tudo é um abuso, um insulto querer passar um atestado de bom ou mau comportamento aos sentimentos dos outros; dizer aos outros como devem hierarquizar os seus sentimentos, como se eles não tivessem cabeça para pensar e o seu coração tivesse sido produzido numa qualquer fábrica da estética do amor, de um regime nazi.

GAVB