Mourinho é uma das figuras mais admiráveis que Portugal contemporâneo já exportou. Eduardo Lourenço, pouco dado a efusões da bola mas sensível à pegada de um português pelo mundo, chamou-lhe o nosso Bonaparte.
Acontece que o tempo não faz descontos a ninguém - muito menos a um Bonaparte - e o declínio é patente. Depois do United, escrevi que Mourinho jogava uma cartada de alto risco ao treinar Tottenham, um clube rico mas sem poder contratar jogadores de topo por se ter empenhado a paga um estádio novo. Mas, num novo fôlego, talvez pudesse descobrir um filão qualquer, como o fizera no Porto ou na primeira passagem pelo Chelsea, ou no Inter, quando desafiava a ordem instalada com a confiança dos competentes e a ousadia dos heróis.
Ora, se há coisa que os clássicos ensinam é que, mais à frente, os heróis acabam por pagar o preço das alturas. Os gregos chamam-lhe hubris. Mourinho perdeu o dom de transformar barro em porcelana, seja porque mudou seja porque a mentalidade dos jogadores também mudou. Tudo muda cada vez mais depressa. Hoje, para dirigir uma equipa, não chega ter um currículo vencedor.
Os jogadores vêem-se com artistas de cinema, já não morrem em campo pelo treinador nem pela equipa, apenas pela carreira - desde que não magoe muito. Acabou o jogador-adepto, os profissionais mantêm vínculos com colegas de outros clubes via twitter - veja-se o exemplo de Sporar no Braga ou de Marcelo e Hazard no Real Madrid, que tanto irritaram os adeptos. O paradigma alterou-se para acompanhar o processo industrial. Ainda por cima, nas equipas de Mourinho, os jogadores não se divertem a jogar. O sistema é tão desenhado para a vitória que resultou numa sensaboria derrotista.
Na segunda passagem pelo Chelsea, Mourinho já tinha lido mal os sinais dos tempos ao chocar contra a médica Eva Carneiro. No Tottenham, respondendo a uma repórter sobre a ausência de Bale, e deu-se ao desplante de dizer que a pergunta era boa, mas ela não merecia uma resposta.
Tornou-se aí claro que, se alguém não merecia resposta a uma boa pergunta, e deixando transparecer que a razão era ter sido feito por uma mulher, então o seu crédito em Inglaterra tinha chegado ao fim.
Agora desceu outro degrau ao assinar pela Roma. A cidade saudou-o num excelente mural neorrealista, com Mourinho conduzindo uma lambreta com cachecol vermelho ao pescoço. É outro recomeço auspicioso, como no Tottenham. O pior virá depois. Para o baço Calcio, será um tónico ter espetáculo de uma lenda tentando reencontrar a porta do passado glorioso, enquanto a hubris apresenta a sua conta com juros de mora.
Desejo-lhe que, se não puder ser o Bonaparte de Eduardo Lourenço, não seja a personagem de um livro de Gabriel Garcia Marques - o General no seu labirinto.
Carlos Tê
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