Etiquetas

domingo, 4 de abril de 2021

NÃO SEI ONDE ARRUMAR TANTA DOR

     


Há uns anos que tinha despojado a casa de todas as recordações, na esperança que a amnésia tomasse conta do  coração, mas só tinha conseguido uma decoração minimalista e e fria.

     Procurava passar pouco tempo em  casa, na ilusão de ludibriar a saudade e a dor. Voltara a ler, mas distraia-me com frequência,  em longas ausências pardas, por isso os livros continuavam nas escadas de serviço, onde não me demorava. 

    Há três semanas comecei a dar aulas de desenho ao Rafael. Vira-o a desenhar à socapa, enquanto repetia mecanicamente Autopsicografia de Fernando Pessoa. Fiquei envergonhada pelo desinteresse que suscitava nos alunos, todavia a delicadeza do  traço do rapaz foi um apelo mais forte. No final da aula provoquei-o, «Tens talento mas precisas de ser orientado.».

    Há uma semana o Rafael completou a sua sexta aula. Há uma  fogueira de luz enquanto ele permanece por aqui. Gosto de o ver desenhar, de o corrigir, de lhe sugerir novas ideias. Aquela é a única hora em que o tempo se mexe nesta casa. Quando ele sai,  a corrente de apaga as brasas e tudo fica novamente sem vida. 

   Ontem, o Rafael não trouxe ideias nem o caderno de desenho. Olhou fixamente a prateleira dos livros que resistiram à minha desistência, e pegou no Ulisses. 

    Pediu-me para ler. Demorei alguns segundos a permiti-lo, mas o rapaz não se amedrontou. Em silêncio começou a ler. Meia hora mais tarde a minha curiosidade feminina não resistiu àquela erupção de personalidade e pedi-lhe que lesse em voz alta. Não recusou nem questionou, como se já esperasse o pedido. Leu o regresso do herói a Casa. Havia naquela voz uma entoação de sábio velho que me fazia duvidar da real existência do momento. O pior fora a traição dos olhos. O dique transbordara.

    O seu silêncio pedia-me que abrisse mais as comportas da dor. Sem citar nomes nem pormenorizar histórias, contei-lhe das mortes, ausências e desilusões, que me encheram a casa de dor e, de como, há anos, perdi as forças para a arrumar. Vejo-a por todo o lado, estragando a luz pura da manhã, ausentando-me da beleza da leitura, tirando-me a fome do futuro.

   Ouviu-me sem surpresa, surpreendendo-me. Depois citou-me despudoradamente: "Os poetas vivem dos sentimentos dos outros para que os outros não percam os sentimentos pela vida". Lembrou-me aquele NÃO TE RENDAS, que uma vez lhes li, mas que me esqueci de ler. Depois foi embora.

    Hoje o Rafael não veio. Mandou-me um sms "Os desenhos podem esperar que comece as arrumações". Aceitei aquela intimação como um desafio. Fui à arrecadação buscar uns caixotes. A casa está vazia de luz porque há muita sombra para encaixotar.  

    Não há casa para regressar, mas há casa para reinventar.


Gabriel Vilas Boas 


Sem comentários:

Enviar um comentário