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domingo, 7 de julho de 2019

AUTORRETRATO DO OUTRO


A exposição Tetsuya Ishida. Autorretrato Do Outro, patente no Palácio Velasquez, parque do Retiro, em Madrid, é a primeira mostra retrospectiva do artista japonês Tetsuya Ishida fora do Japão e reúne trabalhos seus desde 1996 (ano da sua licenciatura em Belas Artes, pela universidade Musashino, em Tóquio) até 2004, pouco antes da sua repentina morte em 2005. 
As suas pinturas, desenhos e esboços são um testemunho excecional do mal-estar e da alienação do ser humano contemporâneo dentro do capitalismo selvagem.
Artista de culto no Japão, Tetsuya converteu-se numa referência para a gerações mais jovens, tendo a sua obra sido apresentada na Europa, pela primeira vez, na 56.ª bienal de Veneza, em 2015.


O realismo cético e niilista de Ishida dá conta da «normalização» da precariedade e do consumo, que passaram a afetar todas as esferas da vida humana.
As personagens retratadas pelo artista nipónico são híbridas, máquinas antropomórficas, que encarnam o grau máximo do domínio das tecnologias assim como a subordinação sem limites a uma nova e inescapável forma de escravatura, que não distingue entre trabalho e consumo, alimentando a ansiedade dos corpos.

Ishida, através da sua amarga sátira social, despoja o milagre económico japonês pós-guerra de todo o idealismo. 
Para ele, esse (este?) é tão só o tempo em que a automatização robótica se intensificou em grande escala em todas as fábricas do Japão, os anos em que a força do trabalho se racionalizou segundo métodos industriais, em que o setor dos serviços desprezou as manufaturas e a taxa de desemprego atingiu números nunca antes vistos.  

Tetsuya Ishida faz parte da denominada "geração perdida" daqueles anos, que cresceu no meio de uma crise de valores que truncava as suas expectativas e a tornava cada vez mais cética. 

A obra deste artista japonês, que morreu prematuramente, alude a uma assassina aceleração dos tempos e das formas de consumo, as quais foram definindo novas dinâmicas de convivência e vinculação afetiva. 

A mostra de Ishida, em Madrid, faz-nos também refletir sobre as novas obsessões do Homem, que habita opressivamente espaços e tempos indistinguíveis, onde trabalho, consumo e ócio se confundem.

A uniformidade que atinge o ser humano moderno e para a qual Ishida quer chamar a nossa atenção está bem vincada no olhar sempre igual das figuras retratadas nos seus quadros. Rostos idênticos, expressões neutras que se replicam quadro após quadro, como reflexo espectacular do mesmo individuo em representação de muitos. 

Enquanto percorria a exposição, em Madrid, esse olhar vazio de humanidade também me incomodou, como se fosse uma ameaça presente e futura que não tenho a certeza de conseguir enjaular. 

A arte nem sempre encanta ou espanta; muitas vezes, ela dilacera, acusa e nos põe na antecâmara do fim, como se nos quisesse dar uma última hipótese de escrever outro final.
Gabriel Vilas Boas

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