Há poucos dias, num sábado (precisamente o dia em que quase todos os portugueses estão a trabalhar), a ministra foi alertada por um amigo, queixando-se que um utente estava há onze horas à espera, para ser atendido, numa loja do cidadão, por causa da emissão de um passaporte. Sem querer saber das razões, das circunstâncias do caso em concreto ou das explicações da responsável pela loja do cidadão, a ministra dirigiu-se à loja do cidadão em causa e deu uma descompostura à funcionária que estava atender um utente, para espanto de todos, pois fê-lo aos berros, e determinou que aquele utente, o do pedido de passaporte, tinha de ser atendido de imediato.
Como é uma pessoa intelectualmente honesta, cumpridora da lei, que não exige aos subordinados aquilo que não é capaz de fazer, a ministra negou que tenha entrado aos berros pela loja do cidadão, que tenha imposto o atendimento a um amigo do amigo que se foi queixar do atraso do atendimento nas lojas do cidadão e conservatórias do registo civil.
Ou seja, a ministra negou a grosseria, a humilhação que infligiu aos seus subordinados como nega que os serviços estão um caos por culpa do seu governo.
O público tem de conhecer os factos como eles são, avaliá-los e julgar com justiça. Não apenas atender ao seu caso, ao seu interesse momentâneo, naquele estilo "desde que resolvam o meu caso, ainda que tenha de usar uma cunha, quero lá saber do resto e dos outros."
Factos
1- O senhor não esperou 11 horas. A loja abre às 8.30h, as conservatórias às 9 horas. Mesmo que ele tivesse estado no atendimento desde o início, só às 19.30 ele podia fazer queixa à ministra que estaria há 11 horas à espera e só algumas horas depois a ministra conseguiria exercer o seu poder arbitrário. Se eu for para a porta de um serviço há cinco da madrugada e for atendido às dez horas, obviamente o serviço público só me fez esperar uma hora para ser atendido e não cinco horas.
2- As conservatórias e lojas do cidadão têm em falta, no mínimo, 1800 funcionários. MIL E OITOCENTOS! Ou seja, o governo diz que o quadro de funcionários é X, mas na verdade estão a trabalhar muito menos pessoas. Isto acontece porque, há mais de dez anos, que o governo não repõe os funcionários que vão para a aposentação ou simplesmente abandonam os serviços.
Um exemplo paradigmático: numa conservatória do registo civil, de uma cidade muito populosa nos arredores do Porto, há três anos havia três conservadores e sete funcionários.
Hoje há uma conservadora (uma aposentou-se e outro concorreu para outra conservatória) e três funcionárias. Curiosamente, o Instituto dos Registos e Notariado atribuiu à única conservadora existente mais um trabalho: tratar dos casos de nacionalidade dos sefarditas. Só esse trabalho ocupa a única conservadora duas a três horas, por dia. Obviamente, muitos serviços como o cartão de cidadão ficam prejudicados. O cidadão que reclama sabe disto? Aprova esta gestão de quem manda nas conservatórias e lojas do cidadão?
3- Uma conservatória regista nacimentos, óbitos, organiza processos e celebra casamentos, tira certidões de todo o tipo, trata de processo de nacionalidade, do pedido de passaportes, responde a emails dos utentes (trinta a quarenta por dia) e também faz e entrega cartões do cidadão. Para a maior dos utentes só faz isto.
4- Por exigência dos seus chefes, a conservadora ou uma funcionária tem todas as semanas de responder a inquéritos estatísticos sobre os seus serviços, completamente inúteis, que ocupam em média três horas e ainda atrasam mais o serviço.
5- Cada funcionária têm a seu cargo dois ou três serviços diferentes e trabalha em média 9 horas por dia, ou seja, trabalha de graça duas horas por dia, que é como quem diz ou 44 horas por mês, ou seja, mais de uma semana em cada mês. Sabem quantas horas dá por ano? Quase 500!!!
6- Nas conservatórias de maior afluência, os funcionários são destratados, humilhados e insultados por alguns utentes que apenas querem tratar do seu caso, mesmo que isso seja à custa de passar à frente de toda a gente, muitas dessas pessoas com atendimento marcado há meses. É frequente a chamada da polícia para impor ordem mínima e assegurar a segurança dos funcionários ameaçados.
7- A cada dois/três meses, é normal uma funcionária "meter baixa" durante 15 dias, devido à exaustão física e psicológica... e o trabalho de dez, que quatro tentavam fazer debaixo de muita pressão e vários insultos, fica para três!
8- Particularizando o caso do cartão do cidadão: uma conservatória de média dimensão (como é o caso da Maia, Gondomar, por exemplo) apenas consegue colocar uma ou duas funcionárias com este trabalho. Tecnicamente, com todo o sistema informático a ter um bom desempenho, cada uma delas faz dois/três cartões por hora. Ou seja, a conservatória da Maia, Gondomar ou até Valongo consegue atender 18 utentes por dia, para o cartão do cidadão. Nalguns casos, pode duplicar. Em muitos destes sítios, as senhas às 9.30 h chegam ao número 50 ou 60!
9- Até Agosto, na sequência da pandemia, o atendimento nas conservatórias só era feito por marcação online. Decisão do governo de Alexandra Leitão. Muitos utentes agendaram atendimentos para Setembro e Outubro. Quando questionadas as chefias sobre aceitação destas marcações, os funcionários das Conservatórias receberam resposta dúbias, mas o serviço central de Lisboa validou-as.
11- Obviamente, a maioria dos utentes não sabe e, pior, não quer saber disto para nada, a não ser que parte desta situação lhes calhe na pele, porque tem um familiar a trabalhar num destes serviços e vê o estado psicológico lastimoso em que está.
12- À ministra Leitão e a todos os que lhe batem palmas, deixo um desafio simples: imaginem-se um dia funcionários de uma loja do cidadão, entrando às 8.30 e saindo às 19.30, seis dias por semana (só não trabalham ao domingo, mas os conservadores nem isso, pois é raro o sábado ou domingo que não têm de ir a uma quinta celebrar um casamento, pagando gasolina e portagens do seu bolso). Imaginem que têm de cumprir não um serviço humanamente possível, mas aquilo que utentes e ministra acham que vocês têm de fazer. Na verdade, nunca seria menos de 30/40 cartões de cidadão / dia, por funcionária. Ou seja, 15 horas de trabalho por dia! Imaginem, ainda, que são insultados pelos utentes e destratados, em público, aos berros, pelos seus chefes.
Se conseguirem fazer isto tudo, com um sorriso nos lábios, achando que os trabalhadores destes serviços são uma "cambada de malandros" que não fazem nada, o lugar é vosso. Podem começar amanhã. Daqui a alguns dias, podem contar com mais um utente para a fila das senhas. E quero ser atendido, nem que seja onze horas depois.
Gabriel Vilas Boas