Etiquetas

terça-feira, 28 de julho de 2020

UM REMÉDIO PARA O CORAÇÃO


Provavelmente ainda não tinha sessenta anos, todavia juntou alguma coragem aos magros cêntimos que tinha na mão esquerda e, envergonhadamente, interpelou o homem que subia a rua, em busca do multibanco:
    
 - Podia ajudar-me a comprar este medicamento?
   
  E exibia a caixa do fármaco como se pressentisse que a palavra de um mendigo não bastasse e precisasse de caução. 
    
    - Só preciso de dois euros!

    Surpreendido pela abordagem e, sobretudo, pela caixa de medicamentos vazia, o homem esquivou-se ao primeiro pedido. 
     - Não tenho dinheiro. Vou agora levantar ao multibanco.
     - Mas ajuda-me? Por favor...
     
      O homem do polo encarnado não sabia que responder. Por natureza era (é) avesso a pedidos de mendigos, num misto de forretice e desconfiança, mas aquela abordagem deixara-o sem coragem para afastar o pedido de ajuda. O multibanco era mesmo a dois passos e os olhos carentes daquele pedinte/doente perseguiam-no até à alma. 

     - Quanto dinheiro precisa?
     - Um euro e tal. Quase dois. Veja...
     
Entretanto abrira a mão, onde se viam um moeda de 10 cêntimos outra de cinquenta, algumas de cinco e outras de dois cêntimos. 
     
    -  Vamos lá à farmácia comprar esse medicamento!

    Percorreram um quarteirão até à farmácia mais próxima. O ocasional altruísta toma a caixa vazia de medicamento e pede à farmacêutica outra igual.

     - São dois euros e cinquenta e oito cêntimos.

       Fica incrédulo. O valor era mesmo aquele que o pedinte lhe indicara. Tão baixo como os três cafés que tomara até então enquanto esperava o arranjo do seu carro na oficina. 

     - São comprimidos para  coração! Muito obrigado!


Atrapalhado, o homem do polo encarnado depositou o medicamento nas mãos do doente cardíaco e tentou fugir da vergonha que sentia de si. 
    Como fora capaz de duvidar da bondade daquele pedido de ajuda? Imaginou o desespero do homem enquanto amealhou vinte cêntimos, depois mais dez, de seguida cinquenta, para um medicamento que não chegava a custar três euros. Pensou na humilhação que aquele pedinte forçado sentiu em cada virar de cara, no apressar do passo de quem o deixou a falar sozinho ou nos vários "nãos" que ouvira até então. 
    Sentiu novamente vergonha da sua hesitação, das suas certezas quanto à manha dos pedintes, da sua falta de sensibilidade e coração. Sim, era ele o verdadeiro doente do coração. 

    Entretanto chegara à oficina, onde o mecânico lhe comunicou dois inesperados dissabores: o carro teria de ficar mais um dia, pois ainda não estava pronto, e o orçamento inicial da reparação seria ultrapassado face à descobertas de novas mazelas.
   Não eram boas notícias, mas qualquer lamento lhe parecia ridículo face à angústia daquele pedinte que procurava dois euros para comprar um remédio para o coração.

GAVB

Sem comentários:

Enviar um comentário