Etiquetas

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

O KITSCH DO MAL


Em Günzburg, cidadezinha chamada «Pequena Viena», nasceu Josef Mengele, o médico carcereiro de Auschwitz, talvez o mais atroz assassino dos Läger; aqui esteve ele escondido até 1949, num convento, e aqui voltou clandestinamente em 1951, para o enterro do pai. 

Em Auschwitz, Mengele, sempre sereno e sorridente, atirava as crianças para a fogueira, arrancava meninos de mama dos braços das mães e esmagava-os no chão, extraía fetos dos ventres maternos, fazia experiências com pares de gémeos - e com especial paixão quando os gémeos eram ciganos -, arrancava os olhos, que guardava nas paredes dos seus aposentos ou enviava para o professor Otran von Verschuer (diretor do Instituto de Antropologia de Berlim e professor da Universidade de Münster mesmo após 1953), injetava vírus, queimava órgãos genitais. 

Talvez ainda esteja vivo, e desde há quarenta aos que escapa aos seus perseguidores. Claro, mesmo um homem que mata outro por divertimento obrigando o filho deste a assistir à cena, pode amar o seu pai.

     

A infâmia atrai as cumplicidades: Mengele foi solto pelos americanos, ajudado pelos ingleses, escondido por frades, protegido pelo ditador do Paraguai. 

    Sem dúvida, não é o nazismo a única barbárie existente neste mundo, e hoje condenar a violência nazi, que deixou de constituir uma ameaça, serve a muitos para esconder outras violências, cometidas sobre outras vítimas de outra raça ou cor, e para profissão de fé antifascista. Mas também é verdade que o nazismo foi um apogeu, um cume inultrapassado da infâmia, o mais estreito nó que alguma vez se travou entre a ordem social e a atrocidade. É enganador recorrer a explicações patológicas, no caso do sorridente médico sádico, como se fosse ele um doente colhido por um acesso imparável. Em Günzburg, no convento onde esteve escondido, não arrancava olhos nem esquartejava vísceras, e não parece ter sofrido por isso de qualquer crise de privação; ter-se-á, sem dúvida, comportado bem, senhor tranquilo e discreto que talvez regasse as flores e assistisse com respeito ao serviço vespertino. Não matava, porque não podia fazê-lo, porque as circunstâncias o impediam, e resignava-se sem inquietações a essa renúncia, aos limites que a realidade impunha às suas aspirações, como qualquer outra pessoa se mantém de coração tranquila embora possa ser multimilionária ou ir para a cama com as estrelas de Hollywood

   

 Timor Domini, initium sapientiae; se não houver uma lei, um temor, um dique que impeça de fazer o que em Auschwitz se podia fazer impunemente, não só o Dr. Mengele mas qualquer pessoa se pode transformar naquilo em que o Dr. Mengele se transformou. 

     Os crimes do Dr. Mengele são uma das mais horrendas páginas dos campos de extermínio. Como qualquer paixão criminosa, também a sua volúpia assassina revela uma enorme banalidade, vazia como o seu estúpido sorriso durante a execução dos crimes. 

Um médico judeu, que era obrigado a secundá-lo nas suas experiências, perguntou-lhe uma vez até quando duraria aquela obra de extermínio. Sorridente, com doçura, Mengele respondeu-lhe: «Mein Freund, es geht immer weiter, immer witer», ou seja, «para sempre, meu amigo, para sempre». Esta frase imbecil e extasiada contém toda a obtusidade do mal: é uma repetição mecânica e fascinada de uma espécie de fórmula ritual, é o balbuciar de um espírito empobrecido e drogado pela crueldade.


Claudio Magris, in Danúbio   

 

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

NÃO MEXER UMA PALHA


A
universidade de Belas Artes de Hamburgo vai dar uma bolsa de 1600 euros a alunos que se proponham a não fazer uma certa coisa. Os alunos escolhem o que não querem fazer. 

Por exemplo, não pensar durante três meses; seis meses sem fazer compras; uma semana sem dormir. 

Os candidatos que falhem não têm de devolver a bolsa. Serão eleitos os projetos com mais relevância social: o que se pretende estudar à a inatividade ativa e como esta inatividade tem impato sobre a vida das outras pessoas.

Os alemães querem avaliar o que seria uma sociedade em que o sucesso viesse da inação. Ou de como sem mexer uma palha se chega a uma vida melhor.

Manuel S. Fonseca 

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

ENTRE A FIDELIDADE À PÁTRIA E A FIDELIDADE À HUMANIDADE

 

A 18 de Outubro de 1944 realizou-se, em Ulm, o funeral nacional do marcha-de-campo Rommel. A multidão ignorante dirigia-lhe uma última saudação, julgando-o morto de um ferimento, em defesa do Reich, quando Rommel, implicado na conjura de 20 de Julho e posto perante a escolha entre o processo e o suicídio, se envenenara. 

Trata-se de um novo paradoxo da interioridade alemã: Rommel por certo que não temia a execução, não lhe faltava  coragem para, por exemplo, como Helmut James von Moltke, enfrentar abertamente o tribunal popular nazi e em seguida o enforcamento.  As cartas que escreveu à sua mulher mostram, na intensidade do seu afeto, a responsabilidade de um homem íntegro. 

Provavelmente, julgo, nesse momento prestar um serviço à sua pátria, já tão em perigo, evitando a perplexidade e a incerteza que o julgamento difundiria na Alemanha, ao transformar subitamente um grande soldado num inimigo do país. 

Com inteiro autodomínio e num sacrifício supremo mas paradoxal fez calar a voz a voz da consciência e prestou um indireto mas precioso auxílio ao regime hitleriano que tinha querido matar. A sua formação não lhe permitia distinguir nitidamente, nem sequer nesse momento, entre o seu país e o regime que o corrompia e traía, ao afirmar encarná-lo. De resto, os próprios Aliados, desconfiados e cegos perante as propostas adiantadas pelos representantes do Estado-Maior alemão no sentido do derrubamento do nazismo, não tiveram, por certo, poucas responsabilidades nessa funesta identificação entre o país e o regime.



Na opção de Rommel, desempenhou um papel de primeira importância a educação alemã no respeito e na fidelidade, considerada em si um grande valor, na lealdade para quem nos acompanha e na palavra dada, mas que mergulha raízes tão profundas que se torna impossível arrancá-la quando o seu chão se transformou num pântano podre.

Esta fidelidade é tão forte que impede o homem de dar conta do engano de que é vítima, de compreender que passou a ser fiel não aos seus deuses mas a ídolos monstruosos, e que, em nome da fidelidade autêntica, temos o dever de nos revoltar contra quem abusivamente no-la exige. 


Até mesmo Von Stauffenberg, autor do atentado contra Hitler, se sentia dilacerado pela cisão alemã entre a fidelidade à pátria e a fidelidade à humanidade, e isto pode ajudar-nos a compreender a dificuldade de uma resistência armada organizada na Alemanha.  

Mas sem dúvida que não era apenas na Alemanha do terceiro Reich que se apresentava o dilema fundamental, mascarado de tantas formas entre fidelidade universal e fidelidade ao dever imediato - entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade, como dizia Max Weber. 

Entre os crimes do nazismo conta-se também o da perversão da interioridade alemã; na encenação desse enterro de Rommel diante da Câmara de Ulm, há a tragédia de um homem reto representada como uma mentira.


Claudio Magris, in Danúbio  

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

A GENTE VAI EMBORA


os planos a longo prazo e as tarefas de casa, as dívidas ao banco,

as parcelas do carro novo que comprámos para ganhar status...

A GENTE VAI EMBORA

Não vale a pena, sequer, guardar as comidas no frigorífico, tudo apodrece,

E até a roupa, a que tanto aspirámos, ficam no varal.

A GENTE VAI EMBORA

Isso resolve e some toda a importância que pensávamos que tínhamos. A vida continua; as pessoas superam e seguem suas rotinas normalmente.

A GENTE VAI EMBORA

A brigas, as grosserias, a impaciência, apenas serviram para nos afastar de quem nos trazia felicidade e amor.

A GENTE VAI EMBORA

dos grandes problemas que achávamos que tínhamos e subitamente se transformam num imenso vazio. De repente, já não existem problemas, porque, afinal os problemas mora(va)m dentro de nós.

As coisas têm a energia que colocamos nelas e exercem em nós a influência que permitimos.


A GENTE VAI EMBORA

O mundo continuará caótico, como se a nossa presença ou ausência não fizesse a menor diferença. Na verdade, não faz. Somos pequenos, porém, prepotentes. Vivemos esquecendo que a morte anda sempre à espreita.

A GENTE VAI EMBORA - eis a única verdade que recusamos encarar. Num piscar de olhos, a vida se (es)vai. E até o cão da nossa afeição será doado e se apegará a novos donos.

Os viúvos casarão novamente, farão novamente sexo furiosamente, andarão de mãos dadas e irão ao ao cinema, como se não houvesse passado nem futuro.

A GENTE VAI EMBORA

Seremos rapidamente substituídos no cargo que ocupávamos na empresa e as coisas que nem admitíamos emprestar serão doadas, algumas colocadas no lixo.

Quando menos se espera, A GENTE VAI EMBORA!

Quem espera morrer? Se a gente esperasse pela morte, talvez a gente vivesse melhor. Talvez colocássemos, hoje, a nossa melhor roupa e não adiássemos Amor para amanhã.

Talvez comêssemos a sobremesa antes do almoço, escarnecendo dos deuses saudáveis Talvez a gente esperasse menos dos outros...

Se a gente esperasse pela morte, talvez perdoasse mais, risse mais, saísse à tarde para ver o mar, talvez a gente quisesse mais tempo e menos dinheiro.

Quem sabe, entendêssemos claramente que não vale a pena entristecer-se com as coisas banais, ouvíssemos mais música e dançássemos sem ter medo do ridículo.

O tempo voa... A partir do momento que a gente nasce, começa a viagem veloz com destino ao fim - e ainda há aqueles que vivem com pressa! - sem se dar o presente de reparar que cada dia a mais é um dia a menos, porque A GENTE VAI EMBORA...

A Gente se despede a todo tempo, aos poucos e um pouco mais a cada segundo que passa.

O QUE ESTÁS A FAZER COM O POUCO TEMPO QUE TE RESTA?! Que possamos ser cada dia melhores e que saibamos reconhecer o que realmente importa nessa passagem pela Terra!!!

Até porque ... A GENTE VAI EMBORA!

(Autor desconhecido)

terça-feira, 4 de agosto de 2020

A ÚLTIMA CRÓNICA DE UM REI EMBARAÇADO

Juan Carlos, o rei emérito de Espanha, entretanto caído em  definitiva desgraça, partiu para o exílio. Definitivo e irrevogável. É realmente o fim do monarca que construiu a própria decadência e que agora vê os seus atos privados do passado fazerem perigar a monarquia espanhola.

Juan Carlos regressa ao Estoril, que o acolheu nos primeiros anos de vida, também num exílio forçado pela ditadura de Franco, para tentar salvar os cacos em que deixou a família real. Chega só, abandonado, escorraçado do reino e do palácio que o viu brilhar durante mais de três décadas fulgurantes, em que a Espanha foi una e próspera. 

Os seus méritos são hoje vãos e desprezados porque a sua conduta pessoal sempre deixou muito a desejar, especialmente no que diz respeito ao enxovalho a que submeteu a mulher, a rainha Sofia, com os inúmeros casos de infidelidade que pontuaram o seu longo reinado. 
Curiosamente viria a ser um escândalo com dinheiro e mulheres a fazê-lo tombar definitivamente do trono. 
Juan Carlos amava o seu povo, amava a liberdade e a democracia, mas à sua maneira, ou seja, desde que este lhe permitisse todo o género de devaneios. 
Durante décadas, o povo espanhol foi generoso com o seu rei, todavia toda a generosidade tem limites. O limite da decência, do carácter e da honestidade. Melhor do que ninguém, o povo espanhol soube distinguir entre o que era esfera privada do dever público e por isso só abandonou o seu rei quando este traiu o povo.     
É completamente intolerável que um rei se torne num vulgar comissionista, usando a coroa para intermediar negócios das arábias, dos quais alegadamente recebeu importantes fundos, depositados num paraíso fiscal, enquanto o povo passava por uma grave crise económica e social. 
Só a suspeita já é suficientemente grave e embaraçante, mas a dificuldade que o rei emérito teve / tem para rechaçar as alegações da acusação suíça revelam bem quão fundo cavou Juan Carlos a sua sepultura e provavelmente a da própria monarquia espanhola. 

Juan Carlos não é só um membro da família real, como tenta acudir o primeiro-ministro Pedro Sanchez; ele era o rei ao tempo em que os factos se reportam e ele não abdicou de nada de essencial. Infelizmente também não abdicou de ser o protagonista de escândalos.
Juan Carlos chegou ao Estoril para o capítulo final da sua história pública. Veio sozinho ou trouxe consigo os despojos da monarquia em Espanha?

GAVB 

terça-feira, 28 de julho de 2020

UM REMÉDIO PARA O CORAÇÃO


Provavelmente ainda não tinha sessenta anos, todavia juntou alguma coragem aos magros cêntimos que tinha na mão esquerda e, envergonhadamente, interpelou o homem que subia a rua, em busca do multibanco:
    
 - Podia ajudar-me a comprar este medicamento?
   
  E exibia a caixa do fármaco como se pressentisse que a palavra de um mendigo não bastasse e precisasse de caução. 
    
    - Só preciso de dois euros!

    Surpreendido pela abordagem e, sobretudo, pela caixa de medicamentos vazia, o homem esquivou-se ao primeiro pedido. 
     - Não tenho dinheiro. Vou agora levantar ao multibanco.
     - Mas ajuda-me? Por favor...
     
      O homem do polo encarnado não sabia que responder. Por natureza era (é) avesso a pedidos de mendigos, num misto de forretice e desconfiança, mas aquela abordagem deixara-o sem coragem para afastar o pedido de ajuda. O multibanco era mesmo a dois passos e os olhos carentes daquele pedinte/doente perseguiam-no até à alma. 

     - Quanto dinheiro precisa?
     - Um euro e tal. Quase dois. Veja...
     
Entretanto abrira a mão, onde se viam um moeda de 10 cêntimos outra de cinquenta, algumas de cinco e outras de dois cêntimos. 
     
    -  Vamos lá à farmácia comprar esse medicamento!

    Percorreram um quarteirão até à farmácia mais próxima. O ocasional altruísta toma a caixa vazia de medicamento e pede à farmacêutica outra igual.

     - São dois euros e cinquenta e oito cêntimos.

       Fica incrédulo. O valor era mesmo aquele que o pedinte lhe indicara. Tão baixo como os três cafés que tomara até então enquanto esperava o arranjo do seu carro na oficina. 

     - São comprimidos para  coração! Muito obrigado!


Atrapalhado, o homem do polo encarnado depositou o medicamento nas mãos do doente cardíaco e tentou fugir da vergonha que sentia de si. 
    Como fora capaz de duvidar da bondade daquele pedido de ajuda? Imaginou o desespero do homem enquanto amealhou vinte cêntimos, depois mais dez, de seguida cinquenta, para um medicamento que não chegava a custar três euros. Pensou na humilhação que aquele pedinte forçado sentiu em cada virar de cara, no apressar do passo de quem o deixou a falar sozinho ou nos vários "nãos" que ouvira até então. 
    Sentiu novamente vergonha da sua hesitação, das suas certezas quanto à manha dos pedintes, da sua falta de sensibilidade e coração. Sim, era ele o verdadeiro doente do coração. 

    Entretanto chegara à oficina, onde o mecânico lhe comunicou dois inesperados dissabores: o carro teria de ficar mais um dia, pois ainda não estava pronto, e o orçamento inicial da reparação seria ultrapassado face à descobertas de novas mazelas.
   Não eram boas notícias, mas qualquer lamento lhe parecia ridículo face à angústia daquele pedinte que procurava dois euros para comprar um remédio para o coração.

GAVB

domingo, 19 de julho de 2020

MANDELA: UMA HERANÇA À PROCURA DE HERDEIROS

  
Timidamente, alguns media recordaram, ontem, o nascimento de uma das maiores figuras do século XX: Nelson Mandela. 
     A história do ex-presidente sul-africano é conhecida e o seu legado, quer na luta contra o Racismo quer na busca de uma sociedade livre e pacífica, uma herança fabulosa.
Apesar do longo tempo na prisão, a extensa vida de Mandela permitiu-lhe ter um papel fundamental na reconciliação entre negros e brancos, no período pós-apartheid, na sociedade sul-africana.
Uma década depois da sua retirada e breves anos passados sobre a sua morte, uma pergunta inquietante assalta-me: que fizemos nós à extraordinária herança de Mandela?

     Infelizmente, sinto que a o mundo a abandonou como uma relíquia do passado. Mandela parece apenas um nome na História, um imponente líder africano que muito fez pela reconciliação do seu povo, mas cuja a ação parece condenada a morrer no passado. 
Nada mais errado, nada mais ingrato, nada mais estúpido.
     
     Mandela foi um grito da Humanidade que acredita que todo o ser humano é igual em direitos e deveres, que aspira a viver em paz e considera a educação um instrumento fundamental para sorver o oxigénio da liberdade.


     Precisamos de abraçar a herança de Mandela e pô-la a render. Não apenas em África, mas em todos os continentes, pois muitos povos, desesperados, têm-se deixado dominar por líderes pequeninos e com ideais racistas, xenófobos, que envergonham qualquer ser humano. 

     A herança de Mandela pertence à humanidade e por isso cabe a cada um de nós o dever de a proteger e fazê-la render, através de pequenos e grandes gestos, em especial, nos momentos coletivos de maior tensão e desespero.

     É importante recordar os ensinamentos de Mandela, citar as suas frases mais fortes, lembrar o  seu percurso corajoso e inspirador, mas não é suficiente. É necessário algo de novo e nosso: fazer crescer o número de democracias em África; aumentar a percentagem de crianças e jovens que frequentam a instrução básica no continente de Mandela, na Ásia ou na América do Sul; derrotar os movimentos racistas na Europa ou nos EUA; diminuir o fosso económico entre ricos e pobres dentro de uma mesma sociedade. 

     Tudo isto faria da herança de Mandela um diamante único e valioso em viagem pelo mundo em vez de uma peça arqueológica, abandonada no baú da memória.  

GAVB