Em Günzburg, cidadezinha chamada «Pequena Viena», nasceu Josef Mengele, o médico carcereiro de Auschwitz, talvez o mais atroz assassino dos Läger; aqui esteve ele escondido até 1949, num convento, e aqui voltou clandestinamente em 1951, para o enterro do pai.
Em Auschwitz, Mengele, sempre sereno e sorridente, atirava as crianças para a fogueira, arrancava meninos de mama dos braços das mães e esmagava-os no chão, extraía fetos dos ventres maternos, fazia experiências com pares de gémeos - e com especial paixão quando os gémeos eram ciganos -, arrancava os olhos, que guardava nas paredes dos seus aposentos ou enviava para o professor Otran von Verschuer (diretor do Instituto de Antropologia de Berlim e professor da Universidade de Münster mesmo após 1953), injetava vírus, queimava órgãos genitais.
Talvez ainda esteja vivo, e desde há quarenta aos que escapa aos seus perseguidores. Claro, mesmo um homem que mata outro por divertimento obrigando o filho deste a assistir à cena, pode amar o seu pai.
A infâmia atrai as cumplicidades: Mengele foi solto pelos americanos, ajudado pelos ingleses, escondido por frades, protegido pelo ditador do Paraguai.
Sem dúvida, não é o nazismo a única barbárie existente neste mundo, e hoje condenar a violência nazi, que deixou de constituir uma ameaça, serve a muitos para esconder outras violências, cometidas sobre outras vítimas de outra raça ou cor, e para profissão de fé antifascista. Mas também é verdade que o nazismo foi um apogeu, um cume inultrapassado da infâmia, o mais estreito nó que alguma vez se travou entre a ordem social e a atrocidade. É enganador recorrer a explicações patológicas, no caso do sorridente médico sádico, como se fosse ele um doente colhido por um acesso imparável. Em Günzburg, no convento onde esteve escondido, não arrancava olhos nem esquartejava vísceras, e não parece ter sofrido por isso de qualquer crise de privação; ter-se-á, sem dúvida, comportado bem, senhor tranquilo e discreto que talvez regasse as flores e assistisse com respeito ao serviço vespertino. Não matava, porque não podia fazê-lo, porque as circunstâncias o impediam, e resignava-se sem inquietações a essa renúncia, aos limites que a realidade impunha às suas aspirações, como qualquer outra pessoa se mantém de coração tranquila embora possa ser multimilionária ou ir para a cama com as estrelas de Hollywood
Timor Domini, initium sapientiae; se não houver uma lei, um temor, um dique que impeça de fazer o que em Auschwitz se podia fazer impunemente, não só o Dr. Mengele mas qualquer pessoa se pode transformar naquilo em que o Dr. Mengele se transformou.
Os crimes do Dr. Mengele são uma das mais horrendas páginas dos campos de extermínio. Como qualquer paixão criminosa, também a sua volúpia assassina revela uma enorme banalidade, vazia como o seu estúpido sorriso durante a execução dos crimes.
Um médico judeu, que era obrigado a secundá-lo nas suas experiências, perguntou-lhe uma vez até quando duraria aquela obra de extermínio. Sorridente, com doçura, Mengele respondeu-lhe: «Mein Freund, es geht immer weiter, immer witer», ou seja, «para sempre, meu amigo, para sempre». Esta frase imbecil e extasiada contém toda a obtusidade do mal: é uma repetição mecânica e fascinada de uma espécie de fórmula ritual, é o balbuciar de um espírito empobrecido e drogado pela crueldade.
Claudio Magris, in Danúbio